Gerou-se recentemente uma polémica, iniciada e fomentada pelo Dr. Rui Rio do PSD, onde se questiona o Governo relativamente à hipotética legalidade e honestidade do contrato de concessão mineira para a exploração de Lítio, recentemente assinado. Muita coisa se disse já sobre esse assunto, nomeadamente que a empresa que ficou com a concessão foi registada 3 dias antes da assinatura do contrato, numa Câmara do PS, ou que os necessários estudos de impacto ambiental não foram feitos, que as populações locais não foram consultadas, etc., etc., etc.. Sou geóloga e Gestora de Ambiente, e enquanto tal, tenho vindo a acompanhar as negociações de contratos de prospeção e pesquisa, entre empresas mineiras e a Direcção Geral de Energia e Geologia, desde as décadas de 80 e 90. Assim sendo, gostaria de esclarecer algumas coisas, numa óptica estritamente técnica, e seguidamente, dar também a minha opinião relativamente a este assunto, deixando desde já claro que não pertenço ao PS, não sou sequer simpatizante e não tenho nenhuma simpatia especial pelo Dr. João Galamba.
Em primeiro lugar, a lei mineira Portuguesa prevê que todos os contratos de prospeção e pesquisa incluem à partida a garantia de que a mesma empresa que deterá os direitos de prospeção e pesquisa, terá também o direito à concessão automaticamente, caso se venha a evidenciar um recurso mineral economicamente aproveitável.
Para além disto, no mesmo contrato de prospeção e pesquisa vem também consagrado pela lei, que a referida empresa terá o direito de decidir quem será a entidade que fará a exploração mineira, podendo ser a própria ou outra empresa por si definida.
De facto o que acontece normalmente, é que a empresa que faz a prospeção e evidencia o recurso é por norma uma empresa cotada na bolsa, estrangeira (na maioria das vezes Australiana, Africana, Neozelandeza, Canadiana..), pequena, com 1 ou 2 geólogos de prospeção, 1 ou 2 financeiros/administrativos, e eventualmente um advogado, ou seja, no limite, 2 ou 3 pessoas, cujo objectivo é definir, recorrendo usualmente à subcontratação dos diversos trabalhos de pesquisa, se naquele local, existe ou não um recurso com dimensão e qualidade suficientes, para ser financeiramente viável partir para a exploração.
Caso tal aconteça, esta pequena empresa tem depois, um de 3 caminhos:
- fazer ela própria a exploração mineira do recurso,
- fazê-lo em “joint venture” com outra empresa de maiores dimensões que tenha mais capacidade em termos de recursos financeiros e/ou humanos,
- ou negociar totalmente a cedência de direitos a essa empresa de maior dimensão.
Seja qual for a solução encontrada, normalmente só nessa fase é constituída uma empresa em Portugal, porque só nessa fase, a lei Portuguesa assim o obriga e até aí, está-se a lidar com empresas estrangeiras, que muitas vezes apenas têm cá um representante, para onde é enviada a correspondência oficial e que serve de elo de ligação entre a empresa e o Estado Português. Está portanto explicado o facto de a empresa sido constituída imediatamente antes da assinatura do contrato. Quanto a tê-lo sido numa Câmara PS, parece-me um preciosismo um bocado idiota, visto que existe em Portugal uma elevada percentagem de Câmaras do PS, e seja como for, quando se constitui uma empresa, isso é feito online ou numa conservatória, não exactamente na Camara. Seja como for, o normal é que o registo seja feito no local de residência do tal representante local, que costuma ser um geólogo, ou um advogado.
Quanto aos estudos de impacto, o facto é que a lei não prevê que estes sejam obrigatórios nem para a fase de prospeção e pesquisa, nem na assinatura do contrato de concessão, prevendo sim que no inicio da concessão, estes sejam feitos num prazo de 2 ou 3 anos, ou seja, antes do inicio da efectiva exploração do recurso mineral. Sempre que negociei contratos de prospeção e pesquisa, fiz questão de que uma avaliação ambiental inicial fosse feita antes do inicio da prospeção, com identificação dos riscos e possíveis acções de mitigação, durante a fase de prospeção, bem como a identificação dos valores naturais presentes e das zonas de protecção existentes. Também exigi, durante a prospeção, que as instituições adequadas fossem consultadas, quanto aos trabalhos de prospeção previstos – Instituto do Ambiente, APA, ICNF, etc.. No entanto, estas minhas exigências prendiam-se com a minha formação, e por isso era para mim evidente, que estes cuidados seriam necessários. No entanto, outros técnicos, cuja formação não inclua a componente de gestão ambiental, não terão possivelmente a mesma sensibilidade e, visto que a lei não o exige, poderão passar por cima de tudo isso, até que a lei assim o dite.
Relativamente às consultas publicas, e mais uma vez olhando para o que está vertido na legislação Portuguesa, aquilo que as empresas são obrigadas a fazer é a publicação em jornais locais, regionais e nacionais da intenção de fazer o contrato, sendo que a DGEG procede aos pedidos de parecer às autarquias envolvidas e entidades de ordenamento e gestão do território e ambiente, como APA, ICNF, etc. Só depois de recebidos pareceres favoráveis destas entidades, e após transcorridos os prazos após as publicações, para recepção de pedidos de esclarecimento, ou mesmo razões impeditivas da assinatura dos contratos, bem como a passagem pelo crivo dos consultores legais da secretaria de estado e respectivo parecer, quanto à legalidade do contrato previsto, é que estes são enviados para assinatura entre as partes, mediante a um parecer favorável do Secretário de Estado. Ou seja, este ou qualquer outro Secretário de Estado poderá dar parecer favorável, apenas após esta exaustiva consulta às entidades publicas e populações locais, o que significa que quando o Dr. Galamba recebeu este contrato para dar parecer, este vinha já visto e aprovado pelas autarquias envolvidas e restantes instituições relevantes, bem como tinha também passado pelo crivo das publicações em jornais locais, regionais e nacionais, e consultores legais. Ou seja ainda, as autarquias mostraram-se favoráveis e a população ou não se manifestou, ou apenas pediu esclarecimentos.
Agora a minha opinião acerca de tudo isto:
– Como geóloga e investigadora, custa-me que não se faça prospeção até porque as Universidades têm poucos recursos, e se não forem as empresas a fazê-lo, os cientistas ficam sem a informação, visto que dificilmente obtêm os financiamentos necessários a este tipo de estudos. Coisas como sondagens, levantamentos aerotransportados de geofísica (electromagnetismo, etc.), ou até mesmo as analises geoquímicas das amostras em laboratórios nacionais ou internacionais, são muitíssimo caros, e fora do alcance dos projectos científicos usualmente levados a cabo pelas Universidades, mesmo com financiamentos externos diversos.
– A exploração de Lítio é muito semelhante à de uma qualquer pedreira de minerais de granito por esse país fora, ou seja, quartzo, felspatos, micas, caulinos, areias. De referir que além destas existem as pedreiras de calcários, que põem problemas diferentes e os barreiros de onde se extraiem argilas para diversos fins, também eles com inconvenientes para o ambiente. De uma forma geral, todas as pedreiras implicam ruído, poeiras, cursos de água alterados pela presença de partículas que formam lamas, e feias cicatrizes na paisagem. O problema foi que lhe chamaram Mina de Lítio, em vez de Pedreira de Produtos Graniticos, ou Pedreira de Micas, que é o que de facto é uma mina de Lítio. O granito é uma rocha constituida por quartzo, felspato e micas, exactamente os mesmos minerais que constituem os grãos de areia das praias, eles próprios produtos de alteração de granitos. O Lítio está associado às micas de Lítio em alguns granitos. Extrair o Lítio, é extrair as micas, tal como se extrai o quartzo e o felspato dos mesmos locais, apenas com uma muito maior margem de lucro, agora que o Lítio se tornou um mineral com importância nas economias internacionais. Dizem que existem minerais radioactivos associados. Pois existem sim, nalguns casos, como existem quando se extrai o quartzo e os felspatos nas respectivas pedreiras em alguns casos. Quando isso acontece, a empresa é obrigada a incorporar nos seus processos, uma qualquer forma de encaminhar esses minerais, na maioria das vezes vendendo-os à empresas que os usam. Tanto estes, como os minerais de Lítio, são processados em fábricas, e não propriamente ali no terreno em que se faz a extração, cumprindo, caso isto aconteça em países com regras restritas, ambientais e de segurança humana, e não no terceiro mundo, uma quantidade de condicionantes para garantir que efluentes líquidos e gasosos, bem como resíduos sólidos, são devidamente encaminhados e processados. Já lá vai o tempo, em que na Europa Ocidental, era possível deixar escombreiras toxicas a céu aberto a lexiviar para as ribeiras mais próximas, e lagunas de águas envenenadas a infiltrar para os aquíferos.
– Para produzir baterias de Lítio é preciso o referido Lítio, e esta coisa do “not in my back yard” tão típica dos Portugueses parece-me mal. Então sendo assim, mandamos isto para os países do terceiro mundo já que eles, assim como assim, já vivem mal e cheios de poluição, e permitimos que este tipo de produção seja feita sem qualquer controlo sobre os impactos ambientais e humanos, desde que não seja aqui por perto?
– Sei que Portugal tem das maiores reservas de Lítio do mundo, tal como a Faixa Piritosa Portuguesa e Espanhola tem das maiores reservas de Cobre do mundo e existe já uma enorme mina de Cobre em Portugal (Neves Corvo perto de Aljustrel é o maior deposito mineral de Cobre do mundo), que ninguém se lembrou ainda de contestar.
– Sei também que a tecnologia do Hidrogénio está a fazer francos progressos e será talvez possível num futuro próximo, conseguir usá-la de forma segura, mas mesmo assim usando baterias de Lítio no arranque do processo. Menores, usando menos Lítio, mas com Lítio. Seja como for, a tecnologia do Hidrogénio tem ainda um largo caminho a percorrer antes que a possamos usar, sem ser como combustível de vai-vens espaciais e afins.
– Ouvi falar de uma nova tecnologia limpa usando etanol e outros álcoois em motores de combustão. O problema é que os álcoois são produzidos a partir de culturas vegetais, que por sua vez também produzem dióxido de carbono, embora em menos quantidade do que os combustíveis fosseis. Além disso, esse esforço de produção vegetal ocupa terrenos que poderiam ser usados na produção de vegetais para consumo humano.
– Enfim, a industria automóvel tem feito progressos em diversas frentes e talvez até seja possível passar sem o Lítio nos automóveis. Então e os telemóveis, os tablets, os laptops, etc.? Fica a pergunta e mais uma vez, como é isso do “Not in my back yard”? Então é licito se for no terceiro mundo, sem precauções de espécie alguma, ambientais, ou com a saude humana, mas já não é lícito se for no nosso quintal? Ou vamos acabar com os telemóveis, os tablets e tudo o resto, no mundo inteiro? Não será fácil. Poderemos tentar outras soluções para os fazer trabalhar e estou segura que elas acabarão por aparecer, dada a enorme inventividade do bicho homem, para o melhor e para o pior, mas por enquanto, o que melhorzinho que temos é o Lítio.
No entanto, concordo em absoluto, que em regiões onde a vocação essencial é o turismo de natureza, ou onde existam zonas naturais com importância reconhecida para as paisagens, espécies e habitats, não se deve de forma alguma privilegiar a exploração mineira, visto que se sabe que isso implicará sempre algum tipo de incompatibilidade, como feias cicatrizes na paisagem, caso seja feita a céu aberto, ruído, poeiras e águas enlameadas, na melhor das hipóteses, caso das pedreiras, de Lítio ou outras.
O PAN embora não referindo-se especificamente à indústria, incluiu já no seu mais recente programa eleitoral, coisas como:
– Alterar o regime da avaliação ambiental estratégica por forma a que este seja mais abrangente,
– Assegurar que, no âmbito da avaliação ambiental estratégica e avaliação de impacto ambiental, diferentes opções são avaliadas para o mesmo projecto,
– Alterar o regime da consulta pública nos processos de Avaliação Ambiental Estratégica e Avaliação de Impacto Ambiental por forma a que este deixe de ser mera formalidade, nomeadamente através da obrigatoriedade de assegurar sessões de esclarecimentos e obrigatoriedade das manifestações dos cidadãos constarem no relatório final com resposta justificada às preocupações destes,
– Rever a lei da Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) no sentido de excluir considerações de cariz económico das avaliações de impacto ambiental,
– Eliminar a regra do deferimento tácito quando esteja em causa um projecto cujo risco ambiental seja acrescido,
– Restringir os regimes de excepção no que diz respeito à possibilidade de executar projectos em zonas de Reserva Ecológica ou Reserva Agrícola Nacional,
– Forte redução da utilização do transporte individual e consequente promoção da utilização do transporte público, pela articulação dos vários tipos de transportes públicos, pela descarbonização das frotas, pela aposta na ferrovia, pelo investimento em combustíveis mais limpos e de base renovável.
Então:
– se não queremos ter em certas regiões do país exploração mineira e de pedreiras, ou mesmo prospeção, caso esta seja manifestamente potencial causadora de danos ambientais, como algumas técnicas de prospeção de petróleos,
– se queremos que os estudos de impacto ambiental da prospeção sejam feitos antes do inicio da mesma, e os relativos à exploração sejam feitos antes da assinatura dos contratos de concessão, ainda durante a prospeção e pesquisa,
– se queremos que a consulta publica seja mais eficaz e pormenorizada, traduzindo melhor as características das populações locais mais isoladas, que nalguns casos ainda nem sabem ler, talvez fazendo sessões de esclarecimento, consultas nos locais e falando directamente com as pessoas.
Então teremos de obrigar a Assembleia da República a aprovar e o Governo a promulgar leis nesse sentido, apoiando as iniciativas legislativas que vão surgindo, pois só se a população em geral se manifestar é que a maioria dos políticos, principalmente os que têm o poder de decisão, irá prestar atenção. Temos de fazer petições publicas, manifestarmo-nos na rua, dar o nosso voto aos partidos que têm uma visão sustentável do planeta.
– Não se prendam é com minudências sem fundamento, ou a fazer petições no sentido de demitir secretários de estado que, bons ou maus na sua actuação geral, se limitam a cumprir o que está na lei, tinham previamente recebido pareceres favoráveis de todas as instituições envolvidas, e não tinham recebido qualquer indicação de que alguém estivesse contra. Recordo que cabe à Assembleia da República propor legislação, e ao Governo aprová-la, e não ao Secretário de Estado.
Isto tudo reiterando, que não tenho qualquer tipo de simpatia especial pelo PS ou pelo Dr. João Galamba, mas gosto de ver os pontos nos is e os traços nos tês.
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