Ser professor já foi um sonho para muitos. Hoje, é uma profissão em extinção, rejeitada por jovens que preferem qualquer outra opção à docência. O que aconteceu? Por que razão quase ninguém quer ser professor? A resposta poderá estar nas armadilhas invisíveis que o sistema criou, transformando uma carreira de vocação num labirinto de desilusão e precariedade. E porquê?
Uma carreira sem futuro
A progressão na carreira docente é um jogo viciado. Em teoria, deveria ser baseada no mérito, na experiência e no impacto real das aprendizagens dos alunos. Na prática, é um percurso com barreiras artificiais, no qual muitos professores ficam condenados à estagnação durante anos, independentemente do seu desempenho ou dedicação.
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Docente, com pós-Graduação em Gestão e Administração Escolar
E no fim, fica a pergunta: será que este desmantelamento da profissão docente é apenas incompetência e negligência deliberada… ou há um interesse maior em manter as próximas gerações menos críticas e mais facilmente manipuláveis?
As avaliações, concebidas para distinguir e reconhecer a qualidade do trabalho docente, tornam-se entraves burocráticos e subjetivos, frequentemente desligadas da realidade da sala de aula. E pior: a possibilidade de regredir na carreira é real, através de mecanismos de reposicionamento. Em que outra profissão de elevada responsabilidade isto acontece?
Docência ou peregrinação? A vida nómada do professor
Ser professor significa estar preparado para mudar de cidade, todos os anos, ou, no limite, várias vezes no mesmo ano. Muitos docentes vivem de mala feita, arrastados de uma escola para outra, sem qualquer estabilidade. Alugam quartos, inúmeras vezes, em condições precárias, partilham casas com estudantes universitários ou gastam uma fatia absurda do salário em alojamento temporário. Como construir uma vida assim? Como ter uma família ou fazer planos de médio/longo prazo, quando o próximo ano letivo é uma interrogação?
Inovar? Como, se estamos amarrados ao passado?
Décadas passaram, mas a estrutura e a dinâmica escolar continuam praticamente as mesmas. As salas de aula de hoje pouco diferem daquelas de há 40 anos atrás. As “grandes” inovações foram um projetor e um computador. De resto, o modelo de ensino continua preso à rigidez do passado, enquanto o mundo avança a passos largos. Os professores querem inovar, mas como fazê-lo com ferramentas tecnológicas limitadas e uma burocracia que engole o tempo e a energia que deveriam estar direcionados para o ensino?
Os papéis do professor: do educador ao administrador de grelhas, relatórios, formulários…
O professor nunca foi apenas um transmissor de conhecimento. O seu papel vai muito para além disso: é um facilitador da aprendizagem, um motivador e um agente de desenvolvimento do pensamento crítico. No entanto, hoje, é um gestor de burocracias e um compilador de documentos. Grande parte do seu tempo é consumido por registos, formulários e grelhas que pouco ou nada contribuem para o processo de ensino-aprendizagem. Tudo deve ser registado, anotado e justificado. A burocracia não é uma ferramenta pedagógica – é um mecanismo de controlo.
Em vez de se confiar na experiência e na prática docente, o sistema impõe provas constantes: grelhas, relatórios e formulários que transformam o ensino numa linha de montagem. Um dia, se um aluno falhar, haverá sempre um documento pronto para apontar o dedo ao professor, como se a aprendizagem fosse um processo mecanizado e previsível. O resultado? Um sistema no qual a autonomia docente se dissolve numa cultura de culpa e vigilância e no qual o professor chega à sala de aula desgastado, esgotado por um mar de papelada.
A escola: um sistema que avalia tudo, menos a si próprio
Os professores são avaliados, os alunos são avaliados, até os relatórios sobre avaliações são avaliados. Mas, e o sistema? Quem o põe à prova? Existe uma avaliação externa das escolas, sim, mas o que muda depois disso? Nada, ou quase nada. Os relatórios acumulam-se, os problemas perpetuam-se e o sistema continua a navegar na sua confortável imobilidade.
Agora, surge um novo modelo de avaliação externa dos alunos, repleto de siglas e promessas de monitorização, equidade e eficácia. Provas de Monitorização da Aprendizagem (ModA), classificação eletrónica, relatórios detalhados… tudo muito bonito, no papel. Mas alguém acredita que estas medidas vão revolucionar a qualidade do ensino? Ou será apenas mais uma dança burocrática para encher estatísticas e justificar decisões já tomadas?
A verdade é que o sistema educativo não teme avaliações, porque sabe que, no fim, continuará exatamente igual. Quem continua a ser responsabilizado pelo insucesso? Professores e alunos. Quem continua blindado a mudanças estruturais? O próprio sistema.
O desinteresse: um sintoma, não uma causa
Dizer que “ninguém quer ser professor” é ignorar as razões que levaram a este desinteresse. A profissão foi destruída pelo próprio sistema que a devia valorizar. Salários estagnados, progressão condicionada, instabilidade geográfica, burocracia sufocante e falta de reconhecimento social transformaram uma carreira nobre, numa armadilha.
Se nada mudar, a escassez de professores não será apenas um problema de recursos humanos, mas um colapso anunciado do próprio sistema educativo. E quando chegarmos a esse ponto, será tarde demais para salvar aquilo que um dia já foi uma das profissões mais respeitadas do mundo.
E no fim, fica a pergunta: será que este desmantelamento da profissão docente é apenas incompetência e negligência deliberada … ou há um interesse maior em manter as próximas gerações menos críticas e mais facilmente manipuláveis?
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