Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval empurra-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.
Walter Benjamim, o Anjo da História
O quadro Angelus Novus do artista suíço Paul Klee (1879-1940) que Walter Benjamim adquiriu em 1921, acompanhá-lo-ia ao longo da sua vida, convertendo-se numa âncora visual e espiritual para suas reflexões sobre o tempo, o progresso e a história. O quadro em si é uma obra de características ambíguas e inquietantes, representando uma figura angelical com traços tanto humanos quanto sobrenaturais. Para Benjamin, Angelus Novus espelhou uma alegoria de como a história poderia ser compreendida, especialmente num tempo marcado pelas guerras e pelo sofrimento humano.
Recordemos que o filósofo Walter Benjamim nasceu em Berlim em 1982, tratando-se de um judeu alemão, foi perseguido pela Alemanha nazi. Benjamim suicida-se em 1940, junto à fronteira espanhola dos Pirinéus quando o seu grupo de fugitivos foi interceptado pela polícia espanhola. Existem muitos relatos, envoltos em mistério, sobre o suicídio de Walter Benjamim. Conta-se que o seu acto de desespero contribuiu para condoer os corações das autoridades espanholas e assim terá salvo a vida de todos os outros elementos do seu grupo.
Paul Klee, um dos expoentes do modernismo, caracteriza-se pelo seu interesse em explorar o espiritual, o simbólico e o primitivo na arte. Em Angelus Novus, Klee desenha um anjo com asas abertas e um olhar fixo, que parece em tensão entre o movimento e a estagnação. Os traços delicados e distorcidos do anjo de Klee oferecem ao espectador uma figura enigmática, cuja expressão tanto remete à sabedoria quanto à impotência. A beleza e a estranheza desse anjo, quase infantil na sua simplicidade, podem ser vistas como uma metáfora para a própria condição humana: frágil, perplexa e, em certa medida, indefesa diante da vastidão da existência e do tempo. Klee explora, assim, a ideia de que o anjo é um ser que transcende o humano, mas que ainda é capaz de carregar os traços de vulnerabilidade, uma ambivalência que Benjamin captura ao interpretá-lo como o Anjo da História. Para Benjamin, o quadro de Klee não era apenas uma obra de arte, mas uma manifestação visual de uma verdade mais profunda sobre a história e a natureza humana.
Na sua nona tese do livro O Anjo da História, o anjo de Klee torna-se a representação visual de um processo histórico trágico e desordenado. A interpretação de Benjamin é rica em nuances e estabelece que o anjo olha para o passado e vê a história como uma pilha crescente de ruínas e destroços, cada um deles representando eventos, sofrimentos e desastres esquecidos ou ignorados. O vendaval que sopra do paraíso, identificado como o progresso, empurra o anjo inexoravelmente para o futuro. Porém, o anjo desejaria parar e reparar as devastações que testemunha.
Este conceito de Benjamin não apenas estabelece uma relação com a obra de Klee, mas também se insere como uma crítica profunda às noções de progresso e desenvolvimento contínuo que marcaram o início do século XX. Benjamin não aceita a ideia de uma história linear e optimista. Pelo contrário, vê nela um processo caótico que empilha catástrofes sobre catástrofes, deixando esquecidos os que foram destruídos. Assim, o Anjo da História torna-se uma alegoria das esperanças e frustrações de Benjamin em relação ao passado e ao presente, bem como um testemunho da sua própria posição como pensador exilado, imerso num mundo que o rejeita e o empurra adiante, independentemente do sofrimento e da perda acumulados.
Que reflexões nos traz o Anjo da História, em pleno sec. XXI, tendo em conta os actuais conflitos que nos assolam, especialmente a invasão da Ucrânia pela Rússia e os conflitos de Israel com o Hamas na Faixa de gaza, as tensões com o Hezbollah na fronteira com o Líbano e a complexidade com o Irão e demais actores regionais?
Walter Benjamin descreve o anjo como desejoso de parar para curar as feridas do passado, porém, é impelido por um vendaval que sopra do paraíso e o lança incessantemente para a frente. Este vento é uma metáfora do conceito de progresso. Walter Benjamim faz-nos notar que esta força em vez de conduzir a humanidade a um estado de paz e desenvolvimento contínuo, tem criado um ciclo interminável de violências e injustiças. Deste modo, o filósofo questiona a narrativa optimista do progresso linear, expondo as contradições entre o avanço tecnológico, político e social e a repetição cíclica de guerras e crises humanitárias.
Nas guerras referidas acima vemos a reprodução deste padrão: regiões marcadas por disputas históricas, intensificadas por interesses geopolíticos e pela tragédia de uma violência que destrói tanto as infraestruturas quanto as vidas civis. Cada uma dessas guerras, ao acumular seus próprios escombros, parece reflectir o que o Anjo da História presencia: um contínuo de destruição que se projeta no futuro sem pausa para a reconciliação ou para a cura.
Podemos verificar que, para o filósofo, a história não é uma narrativa de superação e avanço, mas uma montanha crescente de destroços e sofrimento. O anjo olha para o passado, e contempla os despojos das civilizações e o peso das perdas humanas, sempre maiores e mais dolorosas. É o que vemos todos os dias, nas nossas casas, ao olharmos para o mundo através da janela da televisão: um amontoado de ruínas, a destruição de cidades, a migração forçada, a perda de vidas e de culturas, o esfacelamento das relações humanas. A violência presente nessas guerras carrega uma carga de conflito histórico que permanece sem resolução, e que se torna uma ferida sempre aberta no tecido da humanidade.
Ambas as guerras têm raízes profundas e complexas que remontam a questões de identidade, território, religião e poder. Para o Anjo da História, essas não são apenas disputas políticas; elas representam a incapacidade da humanidade de lidar com a memória do passado e de encerrar ciclos de dor. Em vez disso, as tragédias de ontem alimentam as violências de hoje, como se o vento que empurra o anjo fosse um contínuo fluir de rancores, ressentimentos e desejos de vingança.
Se o Anjo da História deseja interromper a sua marcha, talvez seja porque ele sabe que a reconciliação com o passado é a única forma de impedir o acumular de novas tragédias. O desejo de parar e reparar o que foi destruído é um impulso ético, um apelo à humanidade para interromper o ciclo de violência e construir a paz sobre os alicerces da memória e da compaixão. No entanto, a realidade das guerras contemporâneas parece contrariar essa possibilidade: as divisões e polarizações só aumentam, as alianças internacionais complexificam os cenários, mas estão longe de conseguir viabilizar a paz. Infelizmente, a humanidade parece incapaz de aprender com os escombros da sua própria história.
Ainda assim, a visão do Anjo da História sugere-nos uma reflexão profunda e uma necessidade urgente de transformar a nossa abordagem do passado e do futuro. A repetição dos conflitos talvez só cesse quando a humanidade puder olhar para trás e reconhecer cada ruína, cada perda, cada sofrimento, e buscar, de alguma forma, uma reparação justa. Que as sociedades contemplem os horrores passados e, em vez de sucumbir à tempestade, encontrem um modo de finalmente curar as feridas e impedir o acumular de novos destroços. Em tempos de guerra, esta mensagem do pensador Walter Benjamin grita pela urgência ética na acção humana. É um apelo para que o progresso que nos empurra não seja uma força cega, mas uma força consciente, que contemple o que foi destruído e busque construir a paz.
Cafés Filosóficos Novembro 2024 | 18.30 – 20.00 | Casa Álvaro de Campos | Tavira
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*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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