Que venha o diabo e escolha, na coexistência devastadora entre velhos e novos vícios, que amarram os seres humanos a trágicas dependências e adições, na eterna busca de prazer, alívio, fuga ou controle, semeando ruína em si próprios, família, amigos e tudo o que gira à sua volta. Por regra, há uma minoria que enriquece à conta de vastos exércitos de gente escravizada nas adições para que foram empurrados. Já não bastavam as dependências químicas do álcool, do tabaco ou drogas ilícitas como a cocaína, a heroína, e o interminável cardápio dos laboratórios do crime. Já vinham de tempos imemoriais o jogo, os casinos licenciados ou ilegais, a batota comezinha de saguão ou de esquina. Mas hoje, fruto de publicidade gigantesca, e cumplicidade de gente com poder, o fenómeno disparou à escala mundial, afectando sobretudo vastas camadas da população mais pobre e mais vulnerável (vide a praga das raspadinhas).
A euforia das apostas desportivas, por exemplo, a esperança de grandes ganhos, a adrenalina das jogadas, criaram um círculo vicioso difícil de quebrar, Não há desintoxicação, nem terapia, nem suporte contínuo dos Jogadores Anónimos que cheguem para tanta necessidade de recuperação. Ao vício em jogos electrónicos, a OMS chama-lhe “transtorno”.
Nos últimos anos assistiu-se à chegada e ao potenciar de novos vícios e adições. A compulsão alimentar é uma delas. Fruto da abundância, da diversidade, da facilidade de acesso nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, o acto de comer passou de uma necessidade básica para o consumo excessivo de alimentos em busca de prazeres gustativos, ou simplesmente o cometimento bruto, alarve e impenitente do pecado da gula. Está à vista o rasto destrutivo de obesidades, problemas de saúde múltiplos e questões de autoestima que provoca, com elevados custos financeiros e sociais para a sociedade em geral. Mas a novidade mais perturbadora das duas últimas décadas tem a ver com a dependência da moderna tecnologia e das redes sociais, com todas as gerações presas aos “smartphones” e plataformas digitais. Estas pretendem controlar-nos, enquanto consumidores, no sentido de determinados produtos e ideias, pelo medo e pelo marketing.
Criou-se uma ansiedade global em busca de validação (medida em número de “likes” e comentários), uma procura obsessiva de conexão com pavor de perder qualquer informação ou diversão, que entra no cérebro de cada um em proporções astronómicas, cada vez mais curta, sintética, manipulada e manipuladora, com objectivos comerciais ou políticos. Facebook, Instagram, Twitter, Tik-Tok, passaram a comer connosco à mesa, a acompanhar-nos em viagem, a preencher o espaço do sono e dos sonhos, virando pesadelos sob um bombardeio incessante de notificações, alertas, toques, vídeos, informações, emails, mensagens, num saltitar permanente por dezenas de aplicações com conteúdos de chacha, a atenção fragmentada a cada segundo que passa.
Onde havia socialização, passou a haver isolamento social, cada qual fechado na sua bolha de ansiedade, depressão, inadequação e solidão. Tudo isto gera problemas físicos e impactos na saúde mental. Mas, o pior de tudo, é o arregimentar imparável de crianças e adolescentes para os novos vícios da revolução digital. A Austrália já proibiu o acesso de menores de 16 anos às redes sociais. Será esse o melhor caminho? Uma pessoa viciada perde o controle da frequência ou da quantidade das suas doses de uso ou consumo, sofre quando tenta abster-se, compromete o trabalho, os estudos, os relacionamentos e as responsabilidades diárias, e persiste nesses comportamentos mesmo quando conhece a sua nocividade. No fundo, são doenças, que requerem compreensão e tratamento, em vez de julgamento.
O caminho não passa por criar uma nova variante dos Amish, esse grupo religioso cristão anabatista dos Estados Unidos e do Canadá, que vive como se o mundo tivesse parado nos finais do século XVII, mantendo uma cerca sanitária relativamente a equipamentos electrónicos, telefones, automóveis e todos os sinais de modernidade. Tentar parar com um dedo este rio imenso a que muitos chamam progresso da Humanidade, com vantagens evidentes, é tarefa inglória. Mas há que reagir. Pela educação e moderação, ensinando os jovens a usar a tecnologia de forma saudável e equilibrada. E que os mais velhos saibam estabelecer autolimites à sua utilização, com horários específicos. Há soluções intermédias.
A desintoxicação digital envolve períodos de desconexão e a prática de actividades “offline”. Ah!… que saudades dos velhinhos Nokia, de teclados básicos e à moda antiga, que só faziam chamadas e transitavam mensagens (SMS). Parece que estão de volta, e não é só por saudosismo.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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