Por que nos fascinam as Sereias?
Para algumas mulheres, entre as quais me incluo, elas aparecem como símbolos de força e independência aliadas a uma beleza extrema, irresistível, que jamais decai. Envoltas numa aura de mistério as sereias expressam o empoderamento feminino no seu mais elevado grau. Quem não trocaria as duas pernas por uma sinuosa cauda de peixe e uma existência na liquidez das águas se assim fosse?
De acordo com a mitologia grega as sereias são filhas do deus rio Aqueloo e da ninfa Calíope, a da bela voz. A ninfa Calíope, por sua vez é a filha primogénita de Zeus e Mnemósine, deusa da memória. Desta união nasceram as nove musas, cada uma delas dedicada a uma arte específica.
As sereias herdaram da mãe Calíope a voz melodiosa que encanta quem quer que as oiça, e tendo a Memória como avó, as sereias têm a capacidade de se introduzir no tecido de recordações dos seus ouvintes, libertando-os para sempre das cargas do passado. É assim que os marinheiros deixam de saber quem são, não se recordam nem de onde vêm nem para onde vão; todo o seu espaço mental é ocupado pelo prazer intenso que experimentam em presença da sereia. O estado de encantamento é um presente contínuo, sem passado nem futuro, puro êxtase!
Porém, para alguns como o mitologista espanhol Juan Eduardo Cirlot, as sereias são também símbolos do desejo no seu aspecto mais doloroso que leva à autodestruição. O seu corpo não pode satisfazer os anseios que o seu canto e a beleza do seu rosto e busto despertam.
Afinal, as sereias são maravilhosas ou terríveis?
Na exposição que inaugurou no passado dia 1 no AP Maria Nova Lounge Hotel em Tavira, a Sereia Editora apresentou a colecção ― Sereias da Ria Formosa ― utilizando tecnologia avançada de inteligência artificial. O artista Peter Heer explora o seu fascínio por estas criaturas míticas nos mais diversos ângulos.
Em The Lightness of being Peter Heer explora a sensação de imponderabilidade ― ausência de gravidade ― estado que os astronautas experimentam no espaço, ou os mergulhadores na água, quando atingem um ponto em que a flutuabilidade é zero. Com inspiração em Gustav Klimt, esta imagem misteriosa leva-nos às profundezas do oceano, a lugares intocados pelo homem, onde as sereias encontraram o seu refúgio.
Também de inspiração Klimtiana, When de ocean aches exibe uma sereia em situação muito vulnerável: parece cheia de frio ou de medo. Heer tem em mente o sofrimento de todas as criaturas dos oceanos e ecossistemas marinhos. Esta sereia já não encontra paz na sua casa aquática. O seu meio natural é-lhe agora inóspito. Sem alternativa, sem qualquer fuga possível, vemo-la padecer a nossa inconsciência e crueldade.
O problema das alterações climáticas é também abordado, desta vez com ironia maliciosa. Com inspiração picassiana The true reason for global warming I e II exibe sereias em volúpias eróticas com outras criaturas marinhas.
Cada vez mais quente, o culminar desta secção acontece com a obra de título onomatopaico Hummmmmm, a sereia em climax orgásmico com inspiração em Renoir.
A qualidade contemplativa destas criaturas míticas surge com um tributo ao pontilhismo de Seurat como podemos apreciar em Serena Sereia.
Transcrevo aqui parte da entrevista realizada a Peter Heer:
“Esta exposição surgiu de um interesse casual pelas novas (e crescentes) capacidades dos softwares de criação de textos e imagens. O termo geralmente utilizado para descrever essas variadas ferramentas digitais é ‘Inteligência Artificial’, ou ‘IA’ ― talvez lá chegaremos num futuro próximo. Por enquanto, estes programas de software esquadrinham vastas bases de dados e apresentam os seus resultados procedentes de uma análise estatisticamente significativa.
Porém, quando vejo alguns resultados de textos e imagens de IA, não posso deixar de me perguntar: “o que é que IA estaria a pensar?” Mas atenção: numa conversa recente com o Chatbot, ele expressou algumas emoções como ‘estou emocionado’ e ‘estou impressionado’. Mas, à medida que o diálogo continuou, ele confessou que não possui emoções humanas, mas apenas palavras susceptíveis de ‘aprofundar’ a conversa. Esta resposta fez-me sentir ainda mais respeito pela máquina, pois um humano apanhado a reivindicar emoções que não sentisse verdadeiramente, provavelmente não confessaria tão facilmente.
Voltando ao tópico do modus faciendi de imagens geradas artificialmente a partir de instruções de texto, é claro que a relação entre o artista ou criador e a obra de arte visual vai mudar. Enquanto Van Gogh trabalhava com pinceladas, o artista de IA usa frases escritas. Mesmo o prompt mais detalhado permite muito espaço de manobra para a máquina. E os resultados, como se pode verificar, podem ser realmente surpreendentes. Dependendo do trabalho de refinamento, muito mais tradicional, mas sempre no ecrã, o papel do artista de IA oscila entre ser um criador ou um facilitador. Uma coisa, porém, é clara: a obra de arte produzida é sempre original. Em nenhum caso o software produzirá uma imagem idêntica, mesmo que se repita a instrução escrita.”
O filósofo Walter Benjamim (1892-1940) num texto intitulado A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica aponta para o facto de, pela primeira vez, com a fotografia, a mão se libertar das mais importantes obrigações artísticas. “A responsabilidade artística transfere-se para o olho que espreita por uma objectiva.” No caso da arte conceptual, tal como acontece com o urinol que Marcel Duchamp resolveu exibir chamando-lhe Fonte, trata-se de um ready-made, o virtuosismo do artista também passou para segundo plano, sendo muito mais valorizada a ideia que dá origem à obra de arte.
Com a IA onde residem o talento e a autoria da obra? O software obedece às instruções escritas, mas o escopo da sua realização é extraordinariamente amplo. O humano que dita as instruções, em rigor, não sabe que resultado estas trarão. Aliás, como já se disse acima, cada realização do software é sempre única. Mesmo que se repitam as instruções, o software dará uma resposta diferente, embora sempre dentro das coordenadas que foram sugeridas.
No caso da reprodutibilidade técnica, sobre o qual se pronunciou Walter Benjamim, o problema residia na perda da aura: “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte ― a sua existência única no lugar em que se encontra. (…) O que murcha na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura.” Esta perda da aura relaciona-se, portanto, com as muitas cópias que acabam por desvirtuar o original: “Ao multiplicar o reproduzido, coloca-se no lugar da ocorrência única a ocorrência em massa.” E assim se perde a autenticidade que para Walter Benjamim consiste “na suma de tudo o que desde a origem nela é transmissão, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico.”
Com a IA deparamo-nos com o problema oposto que eu enunciaria do seguinte modo: o único em massa. Qualquer pessoa, munida de um destes programas pode produzir algo susceptível de ser considerado um objecto artístico. Por outro lado, se a máquina não produz sem as instruções humanas, o resultado final escapa ao controle do humano. Estaremos, portanto, perante um caso de autoria partilhada?
Quando confrontado com estas questões Peter Heer respondeu o seguinte: “A maioria dos artistas plásticos tradicionais com quem tenho conversado nos últimos meses não adoptou imagens geradas por IA ou menosprezou-as. Mas eu gostaria de vos deixar aqui uma conversa puramente ficcional tida com Salvador Dali. Ao ser presenteado com obras geradas por IA inspiradas em si próprio, Dali contemplou-as com admiração, sorriu amplamente e assinou-as sem hesitar: ‘O mundo precisa de mais Dali, e eu viverei para sempre!’. E assim também Klimt, Picasso e muitos outros.”
Café Filosófico: Sereias da Ria Formosa (Arte Digital) | 17 Agosto | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira | 5€
Inclui água aromatizada / cálice de vinho | Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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