O mundo que conhecíamos, de Alice Hoffman, publicado pela Suma (Grupo Editorial da Penguin Random House), com tradução de Inês Guerreiro, revisita o Holocausto. A ação, situada entre Alemanha e França, atravessa 4 anos da Segunda Guerra, de 1941 a 1944, até ao seu ocaso. Contudo, não se tome Alice Hoffman como mais um desses autores que tem explorado o filão do Holocausto a título comercial, como outros títulos que têm liderado os escaparates das livrarias. Alice Hoffman, pouco conhecida em Portugal, é autora de uma obra em que perpassa, muitas vezes, o fantástico ou o maravilhoso. O mundo que conhecíamos é justamente uma obra eivada daquilo que se designa como realismo mágico. O mágico está, de facto, fortemente presente nesta obra, mas está, naturalmente, muito distante do real maravilhoso sul-americano.
Quando o controlo do regime nazi começa a apertar sobre Berlim, Hanni Kohn sabe que deve mandar embora a filha de 12 anos. Renunciar à filha é a única forma de a poder salvar. O desespero de uma mãe disposta a tudo, até do impossível, condu-la até um rabino, na esperança de que ele crie uma proteção para a filha. Ele não a recebe, mas Ettie, a filha do rabino, habituada a escutar o pai e com uma memória prodigiosa, proclama-se perfeitamente apta a executar o ritual e proferir as palavras sagradas capazes de criar uma criatura judia mística, um golem raro e incomum, que jure proteger Lea, a filha de Hanni. Ava, criada a partir do barro, torna-se um golem único, a primeira do seu género do sexo feminino e, conforme o tempo passa, e a sua ligação a Lea se estreita, tornar-se-á também cada vez mais humana. A partir daí os destinos destas jovens raparigas ficam ligados e os seus caminhos predestinados a cruzar-se.
Alice Hoffman cruza assim religião, mitologia, história e magia para criar uma narrativa absolutamente enfeitiçante, numa belíssima prosa lírica, profundamente feminista: «O coração já começara a ceder, mas ela era costureira, e suturou-se bem de modo a conseguir avançar» (p. 39). A autora parece aliás fazer justiça a algumas das crenças enraizadas e depois usadas pelo regime nazi como arma: «desde a Idade Média se pensava que os judeus eram mágicos, suspeitos de praticar feitiçaria» (p. 193). Acreditava-se que o golem, cujo objetivo é proteger os judeus, seria um ser parecido aos humanos, ativado por encantamento mágico, uma criatura forte e destemida, imbuída de capacidades sobrenaturais, capaz de falar com os pássaros e os anjos, ver sonhos e prever o futuro (p. 103).
O mundo, cercado pela noite (de um azul cada vez mais carregado) e pelo horror, começa a mudar drasticamente: «um mundo onde tudo podia acontecer e nada era impossível» (p. 270). Os confins do possível são cada vez mais relativizados, quer pela banalidade do mal, quer pela magia e coragem que reside nas ações de algumas mulheres, e dois jovens irmãos, dispostos a tudo para tentar salvar o mundo que conheciam antes da guerra, e que tentam preservar a humanidade que resta, recusando-se a aceitar que o Anjo do Morte, permanentemente a pairar por perto, e o mal vençam.
«Por essa altura, milhões de judeus tinham sido assassinados. Foram enviados para campos de morte, enterrados bem fundo em florestas da Polónia, corpo sobre corpo, frágeis e nus, retorcidos e dilacerados, detidos em Roma e na Grécia e em Paris. Eram almas que tinham enegrecido de horror e que agora se empoleiravam nas árvores, a tremer e em estupefação face àquilo de que os homens eram capazes, sem conseguirem sair do sítio onde haviam sido assassinadas, incapazes de entrar no Mundo Vindouro. Tinham sido torturadas, separadas daqueles que amavam, obrigadas a escavar as suas próprias sepulturas, castradas, humilhadas, vendo o ouro ser-lhes arrancado dos dentes, gaseadas aos seis mil por dia, em Auschwitz.» (p. 202)
Alice Hoffman, nascida em Nova Iorque, é uma premiada escritora americana de grande sucesso. Os seus livros sobre mulheres em busca das suas identidades misturam realismo e realismo mágico. Educada na Adelphi University e na Stanford University, começou a sua prolífica carreira escrevendo contos para revistas. Tem mais de 30 livros publicados, entre romances e livros para jovens e crianças, e uma legião de fãs em todo o mundo.