Há umas bonecas russas, muito étnicas, de tamanhos diferentes, que se metem umas dentro das outras, de modo que é sempre surpreendente encontrar uma boneca mais pequena dentro da maiorzinha.
Isto vem a propósito da minha paragem em Portimão para prestar homenagem a uma grande figura das letras nacionais – opinião pessoal, apenas – e, simultaneamente, uma personalidade que exerceu no foro social papéis relevantes. Esta personagem é Manuel Teixeira Gomes, filho ínclito1 de Portimão e que teve uma breve passagem pela Presidência da 1ª República entre 1923 e 1925 (ano em que já “cheirava” a Estado Novo).
Nessa breve estada e enquanto flanava pela agradável esplanada que margina o rio Arade, dei-me conta de uma brônzea estátua de uma figura masculina sustentando na mão um livro aberto, como quem lê ou declama. Aproximo-me curioso para espreitar a pequena placa a seus pés. Dizia apenas o seguinte: João Braz-Poeta-1912-1993.
Pois é. Cá vem a história da matrioska: venho à procura de uma grande figura e saltam-me ao caminho outras menores, se bem que não menos interessantes. É nestas ocasiões que louvo a internet e a insidiosa Wikipédia, ajudante sempre disponível para dar um empurrãozito à memória.
“Porque vim no Algarve à luz do dia
Menino me criei perto do mar.”
Escreveu ele este verso belíssimo, com ressonâncias de alguns dos versos de Sophia. Será que a poetisa conheceu o poeta?…
João Braz, jornalista e escritor premiado no seu tempo, escreveu o suficiente para ser de citação obrigatória. E fecho esta homenagem com um outro excerto seu, magnífico de ternura e sensualidade:
“A que me trouxe o Amor veio à tardinha
Com sol nos olhos e com mel na boca.”
Mas voltemos a Teixeira Gomes. É de um outro gabarito, este autor; gabarito suficiente para ter chamado a atenção de um outro grande escritor, Urbano Tavares Rodrigues, que inclusivamente fez dele o tema da sua tese de doutoramento, após o 25 de Abril, com o esplêndido título de “Manuel Teixeira-Gomes, o Discurso do Desejo”.
É curiosíssimo (eu, pelo menos, acho estas coincidências imensamente curiosas e significativas), o facto de, em 1923, o pai de Urbano Tavares Rodrigues – Urbano da Palma Rodrigues, grande proprietário alentejano -, ter apoiado a candidatura, bem-sucedida, de Teixeira-Gomes à Presidência da República. Pode dizer-se que fica tudo em família ou que a matrioska, mais uma vez, faz das suas.
Em Portimão, no ano de 1860, nasce então Teixeira Gomes, em berço de ouro. O seu pai era um abastado comerciante de frutos secos. Da casa onde passou a meninice ouvia-se o murmúrio das águas do Arade. Teve educação nas melhores escolas. O pai marcou-lhe um fito na vida: ser médico. Não o cumpriu. O sangue jovem puxou-o para outras realidades. Em Coimbra, no Porto, em Lisboa, misturou-se com a fina flor da intelectualidade portuguesa do último quartel do século XIX. Não vale a pena nomeá-los. Direi apenas: conheceu e lidou com quase todos. Estreia-se na escrita literária aos vinte e um anos na Folha Nova, reputado periódico do Porto. Torna-se um fervoroso republicano. Durante uns anos goza a vida boémia que a geração culta e arrojada da época considerava a excelência do viver. Nesse ambiente, os seus interesses e conhecimentos vão aumentando. Por poucos anos mais, porém, porque o pai, escandalizado com o custo dessa dolce vita, chama-o a Portimão e às suas responsabilidades familiares. Para seu bem, aliás, porque na colaboração com os negócios internacionais da família, vai ter a felicidade de conhecer profundamente e intimamente as sociedades da Europa com os seus defeitos, mas também as suas imensas qualidades. Mercê dessas constantes deslocações nos quinze anos seguintes, transforma-se num sofisticado exemplar de globetrotter. Aproximam-se os quarenta anos – nel mezzo del cammin di nostra vita, dizia o vate2 -, e o corpo e a cabeça pedem-lhe sossego, que encontra no seu Portimão natal. Durante alguns anos trabalha nos seus livros. Até à implantação da República continuará a escrever. Em 1911 o País solicita os seus serviços que irá exercer com brilhantismo, como diplomata, num período particularmente conturbado da vida das nações europeias no geral e em Portugal em particular. Em 1923 é eleito Presidente da República. Cumpre meio mandato. Demite-se do cargo em 1925 e, imensamente entristecido com a vida política, abandona o País. Do seu exílio autoimposto continua a escrever, porém. Crónicas, romances, teatro. É, de longe, um fino e interessado observador da vida nacional. Morre em 18 de outubro de 1941. Só morto regressará à Pátria, a Portimão, em 1951, onde repousa.
Pode então dizer-se que Teixeira-Gomes foi um escritor que escreveu toda a vida apesar de uma interrupção de vinte anos mercê de uma honrosa, se bem que infeliz, participação na vida pública.
No primeiro quartel do século XX os seus escritos escandalizaram a sociedade altamente estratificada do Portimão desse tempo. Da primeira parte da sua intensa vida literária produziu obras como Sabina Freire e Cartas sem Moral Nenhuma, mas, segundo afirma Urbano Tavares Rodrigues3 no prefácio à obra citada, são “Inventários de Junho e Agosto Azul os dois livros heterogéneos e belíssimos que melhor definem o Teixeira Gomes desta época: memorialista, trotamundos, ancorado temporariamente nesse ensolarado litoral algarvio onde vê a projeção da antiga Hélade.”
Do seu exílio argelino em Bougie no quarto número 13 do Hotel l’Étoile o autor vai produzir um conjunto e crónicas, comentários na sua maioria epistolares com uma intensidade e brilhantismo singulares. Pode dizer-se que em Carnaval Literário nos surge em plena maturidade: “humorista, provocador, lapidar, exuberante em máximas, pensamentos, sínteses fulgurantes”4.
No campo da ficção e nesta segunda parte da sua vida literária escreveu dois livros – Novelas Eróticas e Maria Adelaide – que tiveram uma difusão difícil. A tiragem de Maria Adelaide foi inclusivamente apreendida pelo Estado Novo e as Novelas tiveram uma pequeníssima tiragem. Pode dizer-se que este importante autor foi como que esquecido durante dezenas de anos pelos seus pares e pelo público em geral. Só saiu desse limbo nos anos sessenta, e depois, finalmente, a partir dos anos 80 e até hoje, com a publicação dos três volumes das Obras Completas pela Imprensa Nacional da Casa da Moeda.
Para terminar este esboceto direi, como Urbano Tavares Rodrigues, que ao estilo literário de Teixeira Gomes, naturalmente datado “[…] sobrepõe-se o que há de tão universal na sua visão e de tão português, tão algarvio, na sua requintada produção literária iluminada pelo riso em sua perseguição de beleza.”5
Autor de leitura obrigatória para todos os portugueses e, mais particularmente, para os algarvios que têm nele um farol da alta cultura nacional.
(1) De vez em quando é necessário arejar o vocabulário…
(2) Dante Alighieri
(3) Manuel Teixeira Gomes, Obras Completas – VOL. I, INCM, 2010.
(4) Urbano Tavares Rodrigues, op. cit.
(5) UTR, op. cit.
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