“A vida são dois dias e o carnaval são três”- é um ditado popular que frequentemente utilizamos quando precisamos de nos animar. Deixemos de lado as contrariedades da vida, e concentremo-nos na sua parte festiva, de desmesura e estardalhaço. Demos rédea solta aos apetites, amordacemos o grilo falante da consciência e estejamos descansados porque “é carnaval e ninguém leva a mal”.
Mas será que alguém pode levar a mal, mesmo quando não se trata de carnaval? Será que temos capacidade de decidir por nós próprios? Às vezes parece que somos dominados por forças “irresistíveis” e que a nossa livre vontade- se é que ela existe! – é mesmo muito fraca. O próprio Sto. Agostinho se dirigiu a Deus nestes temos: “Dai-me a castidade e a continência; mas não ma deis já”. [Confissões 8:7] Terá sido aqui que Robbie Williams veio buscar inspiração para o seu êxito pop: “Oh lord, make me pure, but not yet”?
Mais adiante, no mesmo capítulo, o então ainda não santo clarifica: “Temia que me ouvísseis logo e me curásseis imediatamente da doença da concupiscência que antes preferia suportar que extinguir. (…) A alma tinha medo como da morte, de ser desviada da corrente do vício em que ia apodrecendo mortalmente.” Trata-se, pois, de uma prece contraditória, um dizendo que se quer não querendo, uma vontade fraca. Porém, mesmo se se tratasse de uma vontade forte, poderíamos estar seguros de que ela existe?
Desde a antiguidade aos nossos dias, há pensadores que negam a existência do livre arbítrio. Consideremos, pois, alguns dos argumentos empíricos contra a liberdade humana.
Existe uma linhagem de pensamento que sustenta que o mundo é governado pela Lei da Causalidade, portanto, como os seres humanos fazem parte do mundo, também a ela se submetem. O sucesso da física de Isaac Newton que permitiu explicar o universo como sendo governado por leis determinadas constitui-se na sua base empírica. No entanto, a revolução quântica do início do século XX tornou essa concepção de um universo mecânico duvidosa. Porém, a mecânica quântica trouxe novos problemas. O seu indeterminismo, por exemplo, parece experimentar-se apenas a nível microscópico. Quando se trata de fenómenos observáveis a olho nu – edifícios, pessoas, animais, etc. – o universo parece comportar-se como uma estrutura causal newtoniana.
Tanto no que respeita à concepção do mundo como no que se refere à mente humana – que é o que mais nos importa aqui – existem correntes científicas que não apoiam a ideia de que tudo o que fazemos está pré-determinado pelo passado e, por conseguinte, totalmente fora do nosso controle. Colocam a hipótese de estarmos sujeitos a inúmeras influências causais, sendo que a soma total dessas influências não determina o que fazemos, apenas torna mais ou menos provável que façamos isto ou aquilo.
Ainda assim, existem alguns argumentos a priori contra a existência do livre-arbítrio que se centram em teorias não determinísticas segundo as quais existem probabilidades antecedentes e objetivas associadas a cada resultado de escolha possível. O filósofo holandês Derk Pereboom (1957 -) enquadra-se nesta linha de pensamento defendendo que as nossas ações, embora indeterminadas, são governadas por probabilidades objectivas. Por este motivo Pereboom questiona a existência da liberdade. O pensador aponta também para o facto de podermos ser influenciados inconscientemente nas escolhas que fazemos por uma série de factores, incluindo aqueles que não são motivacionalmente relevantes. Quer isto dizer que podemos acreditar que escolhemos iniciar um comportamento que, de facto, foi induzido artificialmente. Professor nas universidades de Vermont e Cornell, nos EUA, este académico leva a bandeira da não existência da liberdade às ultimas consequências: defende que nos falta o livre arbítrio necessário para a responsabilidade. Ou seja, quer as nossas ações sejam causadas de forma determinística ou indeterminística, não teremos o controle necessário para merecermos ser culpados ou punidos por decisões imorais, e ser elogiados ou recompensados por aquelas que são moralmente exemplares.
Pergunto-me que mundo teríamos se esta fosse a tese vigente… Voltaríamos à selva? Seria o regresso à lei do mais forte?
Se Pereboom pode ser considerado perigoso trata-se, apesar de tudo, de um filósofo. Ora os filósofos não têm grande projecção nem influencia nos dias de hoje. As grandes estrelas – para além das do cinema e da música – aquelas estrelas que, realmente, movem a opinião pública são os cientistas. E no topo da fama estão os neurocientistas. Que têm os ilustres homens de ciência do séc. XXI a dizer sobre a liberdade?
O neurocientista americano Benjamin Libet (1916-2007) foi premiado precisamente pela sua investigação pioneira sobre o início da acção e o livre arbítrio. Em laboratório desenvolveu a seguinte experiência: cada participante sentava-se a uma mesa em frente ao cronómetro de um osciloscópio. Eram-lhes fixados eléctrodos no couro cabeludo para realização de um electroencefalograma. Seguidamente, recebiam instruções para realizar alguma atividade motora pequena e simples como, por exemplo, pressionar um botão. Era-lhes pedido que anotassem a posição do ponto, no temporizador do osciloscópio, de quando “tomassem consciência do desejo de agir”. Esta experiência permitiu calcular que, em média, existe um intervalo (cerca de quinhentos milisegundos) entre a volição do sujeito – o aparecimento da vontade consciente de apertar o botão – e o acto de o pressionar. Dito de uma forma simples, verificou-se que a decisão de agir, aparentemente consciente, era precedida por um acumular inconsciente de actividade elétrica no cérebro. À mudança nos sinais de EEG que reflecte esse acumular de actividade eléctrica no cérebro chamou-se potencial de Bereitschaft ou potencial de prontidão. Com o desenvolvimento da tecnologia, a partir de 2008, foi encontrado potencial de prontidãoaté 7 segundos antes de que o sujeito tomasse consciência de que tinha tomado uma decisão.
Destas experiências científicas houve pensadores que extraíram a seguinte conclusão: uma vez que os processos inconscientes do cérebro são o verdadeiro iniciador dos actos volitivos o livre-arbítrio não desempenha nenhum papel nesse desencadeamento. Dito de outro modo: se os processos cerebrais inconscientes já deram passos para iniciar uma ação antes de que a consciência esteja ciente de qualquer desejo de realizá-la, o papel causal da consciência na volição está praticamente eliminado.
Podem todas estas experiências científicas provar que não temos livre arbítrio?
Vejamos, exercer a vontade significa podermos fazer algo intencionalmente. A intenção é uma actividade da mente. Claro que se supomos que a mente é apenas uma propriedade do corpo entramos em grandes dificuldades. Ora é justamente assim que a mente parece ser entendida pelos mais renomeados cientistas! O corpo opera de acordo com as leis amorais e inconscientes da física, da química e da biologia. As leis da física não tomam decisões. Os planetas não deliberam sobre qual é a estrela em torno da qual querem orbitar, e quão rápido lhes apetece ir, e se de trajectória elíptica ou circular…
Se acreditamos que, por termos um corpo físico, estamos totalmente sujeitos às leis da física ficamos totalmente indefesos. Se destas experiências neurocientíficas extrairmos a conclusão de que toda e qualquer decisão é, na sua raiz, inconsciente e acharmos que daí decorre que não decidimos nada, então, estamos totalmente à mercê das forças irracionais que nos movem, quaisquer que elas sejam! Seremos, portanto, vítimas absolutas das circunstâncias em todas as ocasiões e – tal como crê Pereboom – nunca teremos de nos responsabilizar ou orgulhar por nada!
Vem-me imediatamente à cabeça um outro êxito da música pop: Olha o robot! dos Salada de Frutas – Será que somos apenas isso, robots mascarados de humanidade?
Inscrições para o Café Filosófico: [email protected]
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico