O poeta vai à frente
Veste um fato novo feito expressamente para esse dia
Leva o estandarte guardado há muitos séculos para essa ocasião
E distribui esperanças rubras em flor
A todos os manifestantesUns põem-nas na lapela
Outros por trás da orelha
Alguns guardam-nas no coração.(…)
Por último a imensa multidão
Que esperou longos anos pelo dia anunciadoVão de mãos dadas
Cantando
Ostentam inscrições onde se leem palavras que não estão nos dicionários
Agitam ao vento bandeirolas brancas com letras de fogo
De que eles não sabem o significado…Manuel Madeira,
Fotografia 1950,1948
(poema, na altura, cortado pela censura)
Longa, rica e multifacetada, a vida de Manuel Madeira pode sintetizar-se em três palavras, ou talvez melhor, três ideias-força: saber, no seu sentido mais amplo e profundo, de busca incessante da razão última das coisas; liberdade, pela qual, quando tal representava um risco, lutou e se sacrificou; e amizade, da qual os seus inúmeros amigos são o melhor exemplo. A poesia, de que foi um mestre entre os mestres, foi, porventura, o legado em que melhor deixou plasmadas essas ideias-força e, de um modo mais geral toda a essência do seu ser de homem bom, generoso, afável, sempre atento e disponível para os outros, cujas palavras eram, na fluência verbal com que connosco comunicava, elas próprias um poema.
Manuel Rodrigues Madeira nasceu a 13 de julho de 1924 em S. Bartolomeu de Messines, no seio de uma família rural de pequenos agricultores. O pai, antigo trabalhador rural que, entretanto, aprendera o ofício de carpinteiro e se tinha empregado nos caminhos de ferro, morreu muito cedo, de tuberculose, quando o filho contava apenas quatro anos. A braços com dificuldades insuperáveis, a família troca os rendimentos incertos das suas terras de sequeiro, em S. Bartolomeu de Messines, pela promessa de dias mais frutuosos no cultivo de uma horta arrendada, no litoral algarvio, primeiro em Faro, depois em Olhão, no sítio de Brancanes, nas imediações da vila, aonde passa a viver.
Por influência de uma avó muito religiosa – que queria que o neto fosse padre – frequenta o ensino primário numa escola semioficial dirigida pelo padre Delgado, auxilia este nas missas e chega mesmo por pouco tempo a ingressar no seminário. Não tendo a experiência corrido bem, e impossibilitado, por razões económicas, de poder prosseguir os estudos por outra via, como acontecia, aliás, por essa altura, com a esmagadora maioria dos jovens, emprega-se, para ajudar a família, num estabelecimento comercial.
Desde muito novo sedento de conhecimento – como dirá mais tarde, o que ele gostava mesmo era de saber – aproveita todos os tempos livres para ler e estudar e compensar, através da sua iniciativa e esforço, a falta de acesso ao ensino que a sociedade lhe negara. Como afirma na sua Autobiografia:
«As noites, principalmente durante três ou quatro horas, à luz de candeeiro a petróleo, passava-as lendo, a princípio seletas literárias acompanhadas da gramática, geografia, história, filosofia e francês, língua que admirava e que aos poucos se foi tornando útil também sob o ponto de vista profissional, permitindo-me atender clientes estrangeiros que começavam então a aparecer como turistas nos estabelecimentos onde trabalhava.
Estudava sozinho, nesse tempo não havia ensino noturno organizado e público e eu não possuía rendimentos suficientes para pagar a professores particulares. (…)
Entre as matérias que voluntariamente estudava, sobressaíam algumas a que dedicava gostosamente mais tempo, como eram ciências, gramática e literatura em geral e em particular poesia e filosofia. Mais tarde, no domínio das ciências sociais e humanas, mereceram-me significativo empenho a antropologia e para os obter preferia os (livros) emprestados e só no caso de os não encontrar recorria às livrarias, sacrificando muitas vezes os gastos com distrações próprias da idade ou a compra de artigos de vestuário por exemplo que não fossem absolutamente indispensáveis (…).»
Durante a adolescência e primeiros anos da juventude, uma ânsia ilimitada de saber leva-o a ler centenas de obras, de estudo ou de recreio. Dos grandes autores clássicos – Dostoiewsky, Stendahal, Tomás Mann – aos modernistas e, já perto do final da guerra, com o crescendo da oposição ao regime, aos neorrealistas, então em voga, além, naturalmente, dos poetas – Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Antero de Quental, poeta oitocentista cuja obra e vida não só lê e admira como estuda com afinco – nada escapa à sua imensa curiosidade intelectual.
Fruto de algumas destas leituras e de um espírito crítico agudo, que as mesmas acicatam, começa a pôr em causa os princípios da fé católica em que, de forma acrítica, tinha sido educado durante a infância e, por volta dos quinze anos, afasta-se progressivamente da igreja que até aí frequentara com alguma regularidade. Estranhando o facto, o padre Delgado quer saber das razões do afastamento. Não satisfeito com a resposta tão sincera como frontal dada pelo jovem, o padre, conhecido pelo seu mau feitio, quando era contrariado, reage intempestivamente com um sonoro “Vai, que és um idiota!”, sem que tivessem voltado a falar-se.
Com dezoito anos, é admitido como funcionário da Tesouraria da Fazenda Pública (hoje Finanças) de Olhão, emprego que, além de uma melhor remuneração, lhe vai permitir dispor de mais tempo livre para a leitura e o estudo, mas também para o convívio com os amigos. Com a aproximação do final da guerra e a esperança de uma democratização do país que daí possa resultar, as leituras de livros com maior conteúdo social e político, por vezes de autores proibidos (caso do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que leu sofregamente), tal como as conversas com os amigos sobre o conteúdo desses livros e a natureza ditatorial do regime ocupam-lhe grande parte dos tempos livres.
De entre os amigos, dois exerceram sobre ele uma grande influência: Raúl Veríssimo, grande amigo e confidente da juventude, a quem desde muito cedo o liga a paixão pelos livros e a aspiração a uma sociedade mais justa e fraterna, e cuja amizade, sólida como o aço, perdurará pela vida fora; António Simões Júnior, um pouco mais velho, pintor da construção civil, autodidata e futuro escritor, que, mais tarde, se radicou na Argentina, e com quem, numa noite escura, se iniciou na luta clandestina – a pintura na atual EN 125, no chão e nas paredes, em letras garrafais, de frases contra a ditadura. Não menor, ainda que noutro plano, foi a influência que nele exerceu o Dr. Francisco Fernandes Lopes, figura incontornável da vida cultural de Olhão desta época, cujo «pensamento heterodoxo» (ou fora da caixa, como diríamos hoje) não só admirava como tomou como exemplo pela vida fora.
Alguns anos mais novo (falecido este ano), um outro seu amigo e companheiro, Joaquim Carlos Silvestre, recorda assim estes tempos:
«É (…) por intermédio de António Simões Júnior (…) que conheço o Manuel Madeira. Este desde logo me cativa e exerce sobre mim uma grande influência intelectual e política. A sua bagagem intelectual e as suas qualidades de pedagogo impressionaram-me. Era o “mestre” que eu precisava. É também ele quem me desperta para as questões filosóficas: o real é a representação das nossas ideias? (princípio do idealismo) Ou temos ideias porque as percecionamos do real? (princípio do materialismo)
Os nossos horários de trabalho possibilitavam a oportunidade de nos encontrarmos durante o dia. Mas era à noite ou aos domingos que tínhamos mais tempo para os encontros, íamos – eu e outros amigos, nomeadamente o Vitoriano Rosa, o Fradinho e o Frederico – por vezes a sua casa ver a sua pequena biblioteca, manusear os seus livros e ouvi-lo falar de temas tão diversos como Antero de Quental, quer quanto poeta, quer quanto arauto dos ideais socialistas, e de poetas como Paul Éluard, Drumond de Andrade, Garcia Lorca, Adolfo Casais Monteiro, etc. e, como não podia deixar de ser, dos poemas do próprio Manuel Madeira. Também tomávamos contacto com livros proibidos, nomeadamente sobre materialismo dialético – histórico e filosófico – o que, consequentemente, nos levava ao realismo na arte e ao “socialismo real” na sociedade. E o que também nos haveria de levar à prisão Política, com os sofrimentos inerentes. (…) Outro amigo e grande companheiro, sobretudo do Madeira, por ser da mesma geração, que participava nestes encontros, e por vezes era ele próprio que os promovia na sua casa, era o Raul Martins Veríssimo. “Explicador”, que só não foi professor liceal porque o pai não o pôde manter na Faculdade de Letras em Lisboa, era uma pessoa muito exigente consigo própria, muito estudioso, perfecionista (…) Na relação entre o Manuel e o Raul Veríssimo expressa-se uma outra característica da personalidade do primeiro, digna de relevo: o espírito de solidariedade atuante, mesmo implicando sacrifícios íntimos, sobretudo quando se trata de amigos íntimos. (Muitos anos depois, tendo o Raul ficado gravemente doente) foi o Madeira quem passou a ajudá-lo desde os pequenos gestos indispensáveis à vida diária até ao banho periódico. Fez tudo isto até que fisicamente pôde!»
Convidado por António Simões Júnior, à altura membro da organização clandestina local do PCP, foi, em 1946, um dos participantes da reunião, em Faro, na casa de António Ramos Rosa, em que foi fundado o MUD Juvenil no Algarve. Este facto inaugura um longo período de envolvimento na luta contra a ditadura, durante o qual é preso por quatro vezes: em 1947, 1948, 1951 e 1952.
A primeira prisão dá-se em 1947, a seguir à concentração de Bela Mandil, iniciativa do MUD Juvenil de que foi um dos organizadores e participantes e que juntou cerca de um milhar de jovens vindos de toda a província. Interrompida pela Polícia, que, desde Bela Mandil, “escoltou” os jovens até Olhão e, já dentro da vila, à entrada da ponte sobre o caminho de ferro, disparou alguns tiros, felizmente sem outras consequências que não um buraco na aba de um chapéu e a debandada de grande número dos manifestantes para as ruas laterais, esta concentração estaria, nas semanas seguintes, na origem da prisão de dezenas de jovens algarvios – casos, entre muitos outros, de Raúl Veríssimo, Manuel Madeira e Lopes de Brito, que à altura compunham a Comissão Concelhia de Olhão do MUD Juvenil. A propósito destes, um informador da PIDE escrevia a seguir à sua libertação:
Relatório da PIDE I
(O Raúl Veríssimo, o Manuel Madeira e o José Lopes de Brito) fizeram o propósito firme de não renunciarem aos seus ideais políticos, desafiando descaradamente os elementos da situação.
O Manuel Madeira (…) foi com desgosto de todos os elementos situacionistas reintegrado nas suas anteriores funções (nas Finanças) o que (…) chega a convencer as pessoas (…) de que afinal ele tinha e continua a ter razão (…)
O Raúl é explicador do Curso dos Liceus, tendo mais de uma dezena de explicandos, no espírito dos quais vai incutindo as suas ideias políticas, o que virá a ser prejudicial no futuro, pois quase todos os rapazes e raparigas de Olhão (…) são ou virão a ser seus alunos.
(IAN/TT/PIDE -Proc. 917/47)
Relatório da PIDE II
(O Raul Veríssimo) exerce sobre os seus alunos uma influência tal que os pais se queixam já das ideias bolchevistas demonstradas pelos filhos que, na quase totalidade dos casos, deixaram de respeitar os pais e se afastaram por completo dos seus deveres religiosos, que antes cumpriam (…).
Os alunos deste indivíduo, de ambos os sexos, passaram a interessar-se por literatura de autores de obras prejudiciais à sua formação política e moral (…) A isto não é alheio o Joaquim Farracha que, possuindo uma livraria, adquire e lhes facilita os livros necessários, os quais, naturalmente, não aparecem à venda, em público.
O José Lopes de Brito, que se exibe de fato de ganga e boina, como símbolo do proletariado – segundo o seu dizer público – auxilia o Raúl Veríssimo na bolchevização de menores, estudantes e, até, operários.
(IAN/TT/PIDE – Proc. 205/47)
Após a sua segunda prisão, em 1948, em Silves, onde ocasionalmente se encontrava com alguns amigos, é demitido do emprego nas Finanças. Com a mãe gravemente doente, além de abalado pela morte recente do único irmão, emprega-se, graças à solidariedade de amigos, primeiro, como vendedor de conservas de peixe e de equipamento de extração e armazenamento de azeite, e, depois, como escriturário contabilista de uma firma de serralharia, em Vila Real de Santo António, onde fixa residência.
Pela sua violência, a última prisão foi a que mais implicações teve na sua vida futura. Preso por ter assinado, com dezenas de outros signatários (entre eles, vários algarvios), uma exposição dirigida ao ministro do Interior que reclamava a libertação de um grupo de presos políticos, é brutalmente espancado durante os interrogatórios, o que lhe provoca uma grave hemorragia nos pulmões. Temendo o pior, a PIDE é forçada a transferi-lo de urgência para a enfermaria, onde permanecerá durante mais três meses, até à sua libertação. Ainda combalido, a necessitar de repouso absoluto, além de abalado pela morte recente da mãe, valeu-lhe, num primeiro momento, a solidariedade do amigo e velho companheiro do MUD Juvenil António Ramos Rosa que, estando, na altura, a viver em Lisboa numa residencial, prontamente se disponibilizou a dividir consigo o quarto e a apoiá-lo durante os primeiros tempos e, num segundo momento, a solidariedade da família da namorada e futura mulher, Marina Cortes, que o acolhe na sua casa, em S. Bartolomeu de Messines, até ao fim da convalescença, em contacto benfazejo com os ares da serra.
De novo sem emprego e com possibilidades escassas de voltar a consegui-lo no Algarve, onde, além da crise que se vivia na altura, eram mais conhecidas as suas anteriores atividades políticas, regressa a Lisboa. Aqui inicia uma nova fase da sua vida profissional, mais estável e melhor sucedida, primeiro, por um curto período, numa cooperativa, perto do Rossio, depois numa firma de contabilidade, na Venda Nova, onde rapidamente ascende a chefe de escritório. Superado mais um escolho – o despedimento desta firma devido a um mal-entendido com a entidade patronal – é, por fim, em 1958, admitido num grupo empresarial ligado à multinacional UNILEVER, com sede na Holanda, onde permanecerá, durante mais de 30 anos, até à sua reforma, em 1992. Inicialmente indigitado para dirigir a produção de uma fábrica artesanal de gelados deste grupo empresarial, o que o obrigou a frequentar vários estágios no estrangeiro, será, alguns anos depois, o responsável pela passagem do dito estabelecimento à produção industrial e pelo lançamento no mercado dos conhecidos gelados OLÁ (dos quais foi, por isso, uma espécie de pai). Estes factos são tanto mais relevantes quanto é certo que, não dispondo de habilitações académicas formais, isso nunca foi impedimento para o exercício de funções de chefia sobre outros funcionários da empresa com esses requisitos.
Como recorda o seu antigo colega, José Pedro Mendonça:
«Tive o privilégio e a sorte de conhecê-lo ainda eu era um jovem a entrar no princípio de uma carreira profissional séria. Com o tempo criou-se uma amizade fácil no trabalho, reforçada com o alargamento à vida privada.
Senão vejamos: O Manuel Rodrigues Madeira era chefe de produção da OLÁ, ainda na fábrica velha da Estefânia, quando eu entrei para o Planeamento de Produção e, portanto, fui seu subordinado. Nessa altura estranhei não apanhar um senhor engenheiro. (…)
O Manuel Rodrigues Madeira explicou-me as regras sem qualquer dificuldade. Apercebi-me então que o meu chefe tinha uma facilidade enorme em dizer claramente o que pretendia. Tinha o dom da comunicação! (…)
No verão a fábrica trabalhava em contínuo e sempre que as situações o exigiam o Manuel Rodrigues Madeira ficava até às tantas a ajudar a resolver problemas. (…)
Entretanto a fábrica nova de Santa Iria começa a ser construída. Em determinada altura perguntei-lhe porquê, como chefe de produção, não tinha contactos com os holandeses que estavam a dirigir as obras e ele respondeu-me que isso seria trabalho para um engenheiro que haveria de aparecer.
E realmente apareceu o Eng.º E. Brum. (…)
Um dia o E Brum entra na fábrica da Estefânia (situada em Lisboa) a questionar decisões do Manuel Rodrigues Madeira. A discussão acalorou-se, as coisas azedaram e o Manuel Rodrigues Madeira acabou por expulsar o E Brum dizendo-lhe que na Estefânia era ele que mandava.
Entendi que apesar de estarmos no tempo da outra senhora e não tendo o Manuel Rodrigues Madeira um canudo não era forçoso um indivíduo nas suas condições sujeitar-se a impropérios e abusos de poder sem se impor.
Pouco tempo depois deu-se o 25 de Abril de 1974. Não me lembro bem, mas penso que só então soube de alguns aspetos da vida passada do Manuel Rodrigues Madeira. Era mais fácil falar de tudo e de todos e percebi que aliado a uma inteligência ímpar que tinha nascido com ele, a passagem pelo seminário, a militância pelo Partido Comunista, a prisão pela PIDE aliadas a uma grande perseverança de autodidata lhe tinham forjado o carácter e a maneira de ser.»
Ainda na residencial onde viveu com o amigo e poeta Ramos Rosa ou, mais tarde, já depois de radicado na capital, envolve-se na sua fervilhante vida intelectual. A convite de Ramos Rosa, colabora com poemas seus na revista Árvore e nos Cadernos do Meio Dia, conhece pessoalmente alguns dos nomes mais destacados da vida cultural da altura – Ferreira de Castro, Fernando Lopes Graça, Carlos Aboim Inglês, António Borges Coelho e Antunes da Silva – e participa com eles e com outros, como o algarvio José Manuel Tengarrinha, que já conhecia antes, nalgumas das tertúlias que, na altura, sob a vigilância apertada da PIDE, animavam dois cafés do Rossio, o Portugal e O Gelo. Embora na altura sem qualquer atividade política direta, para não atrair as suspeitas da PIDE, empresta, durante algum tempo, a sua casa para a realização de reuniões do PCP, nomeadamente do seu Comité Central, com todos os riscos que, pelo seu carácter clandestino, isso podia ter para si, caso fosse descoberto.
Reformado desde 1992, regressa a Olhão, onde, depois de adquirir uma aprazível vivenda, em Marim, passa a viver com a mulher e a única filha, Natércia e, após o falecimento da primeira, em 2002, apenas com esta última. Finda uma longa vida de trabalho – mesmo com interrupções, superior a 50 anos – pode enfim dedicar mais tempo à atividade literária, que as exigências anteriores da vida profissional tinham obrigado a relegar para segundo plano, e ao convívio com os amigos, antigos e novos, marca de água da sua forma de estar na vida, que cultivará com indisfarçável prazer até ao fim dos seus dias. Da sua vasta obra literária, constam oito livros, publicados já nesta nova fase da vida, entre 2004 e 2016, ano do seu falecimento, além de um póstumo, em 2023.
Sobre a admiração e ternura com que dele se recordam os amigos, nada melhor do que terminar com as palavras da sua amiga e vizinha dos tempos em que viveu na Amadora, Primavera Lourenço:
«Tenho o privilégio de conhecer o Manuel Rodrigues Madeira há quase meio século.
É alguém que vale a pena ter como amigo, pela sua humanidade, pela sua inteligência, pela sua modéstia.
É sempre um prazer conversar com este meu amigo. Como é muito culto estou sempre a aprender. Por outro lado, é muito tolerante, e eu, que sou muito faladora, por vezes ultrapasso os limites, e ele, sempre atencioso, ouve-me com uma deferência, como se eu desenvolvesse um tema do maior interesse.
Foi muito curiosa a forma como me relacionei com o Madeira:
Em 1959, mudei de residência, de Lisboa para a Amadora, tendo como vizinhos três elementos maravilhosos (—): o Manuel Madeira, a minha querida amiga Marina, sua mulher, (…) uma senhora de grande generosidade, sempre pronta a ajudar o seu semelhante, (…) por fim a filha do casal, Natércia (que para mim será sempre a Tété) que conheci tão pequenina que mal tinha começado a andar. (…).
Quando em 1959, em plena época salazarista, fui informada de que ali viviam muitos informadores da PIDE e eu, que era de esquerda e vivia com a minha mãe, que também era contra o regime de Salazar, pedi-lhe para ter cuidado com desconhecidos que tentassem falar de política. (…)
Entretanto apareceu na minha caixa de correio um jornal endereçado a Manuel Rodrigues Madeira, que vinha do Brasil e cuja linha política era de direita. Naturalmente pus o jornal na caixa do meu vizinho, ficando a dúvida de que ao meu lado podiam morar pessoas suspeitas. A morada estava correta, mas o carteiro voltou a pôr novo exemplar na minha caixa de correio. Nessa altura tive curiosidade de ver o que dizia aquele jornal, de tão importante, para ser remetido do Brasil, tão assiduamente. Qual não foi a minha surpresa, quando me apercebi que o que verdadeiramente interessava o meu vizinho era um outro jornal que vinha no interior e que falava sobretudo do general Humberto Delgado, que na altura se encontrava exilado no Brasil. (…)
Resta-me acrescentar que o Madeira, com a nossa troca de impressões, consolidou as minhas convicções políticas e também me deu um grande exemplo como trabalhador. Lembro-me que saía de casa de madrugada e regressava de noite. Mesmo assim ainda recebia os amigos com toda a simpatia. Mas como arranjava tempo para estar sempre atualizado culturalmente? É a incógnita que ainda hoje permanece no meu espírito.»
- Por Idalécio Soares, autor dos cadernos O Algarve e o 25 de Abril uma resenha breve 50 anos, publicados pelo Postal do Algarve em abril e maio deste ano
Texto da comunicação proferida pelo autor na palestra de homenagem a Manuel Madeira, organizada pela APOS (Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão), em colaboração com o Município de Olhão, e que teve lugar no passado dia 10 de novembro, no Auditório Municipal desta cidade, no âmbito do Festival Arte Larga.