O Miniaturista, de Jessie Burton, com tradução de Catarina Ferreira de Almeida, é um romance histórico, mas também um thriller psicológico que escapa um pouco a definições genéricas. Originalmente publicado entre nós em 2015, foi recentemente relançado, numa segunda edição, a propósito da publicação de A Casa da Fortuna, o mais recente romance da autora, e a aguardada sequela do seu romance de estreia O Miniaturista. Jessie Burton, que tem vindo a ser publicada pela Editorial Presença, é também a autora de A Musa (2017), um êxito de vendas publicado em 30 países.
Num dia de outono de 1686, a jovem Petronella Oortman (Nella), com cerca de dezoito anos, recém-casada com um próspero mercador da Companhia das Índias, Johannes Brandt, chega a Amesterdão na expectativa da vida esplendorosa que este casamento auspicioso lhe promete; uma união que é sobretudo um contrato, com vista a salvar o seu nome de família da ruína e, sem que ela suspeite, uma forma de o marido manter uma reputação intocável como homem de família, que parece viver sobretudo para as suas viagens a países distantes. Porém, rapidamente se sente dilacerada entre um marido tão amável quanto distante, e uma cunhada tão rígida quanto enigmática. Johannes não parece disposto a consumar o casamento com a noite de núpcias que Nella tanto ansiava e, em contrapartida, compensa com uma estranha prenda a sua permanente ausência: oferece à mulher uma réplica perfeita, em miniatura, da casa onde vivem.
Nella encomenda então ao miniaturista algumas peças para ornamentar a casa que retrata o seu mundo, em miniatura. E eis que algo de surpreendente e atemorizador acontece: começam a chegar novas encomendas de miniaturas que nunca foram solicitadas, embora algumas tenham sido intimamente desejadas, e, gradualmente, Nella compreende que as peças – réplicas do mobiliário da sua casa, e das próprias pessoas que as habitam – são presságios silenciosos de futuras tragédias. Será o miniaturista capaz de ver além do tempo (não é por acaso que foi aprendiz de relojoeiro)? Será uma profetisa? Será uma divindade que manipula, como se esta fosse uma boneca, o destino de Nella?
O livro é particularmente original na forma como retrata uma Amesterdão em tempos áureos, onde alguém pode investir fortunas em algo aparentemente tão fútil como uma réplica de uma casa, da mesma forma que vivem intensamente os novos sabores que chegam das Índias. Mas mais do que as especiarias, é o açúcar que ganha aqui particular destaque, como se nota no enlevo com que Nella sonha como massapão, ou quando prova uma receita de chocolate quente que está a ser testada na confeitaria de Hanna. Por outro lado, a austeridade começa a espalhar uma sombra sobre Amesterdão, como acontece quando se proíbem biscoitos de gengibre em forma humana, um acto aparentemente inocente de doçaria condenado como sinal de idolatria. O que dizer então das estranhas miniaturas de Nella que representam pessoas de carne e osso, esses bonecos aos quais ela confere uma aura mística, como se guardá-los protegesse quem representam, ou como se ajudassem a proteger a própria Nella…
A prosa é escorreita, ritmadamente lírica, mas despretensiosa. Embora possa parecer um romance ligeiro, trata-se de uma narrativa profundamente complexa. A narração simplesmente descritiva alterna com observações acutilantes da natureza psicológica das personagens que, aliás, sofrem uma constante evolução, sempre prontas a surpreender-nos e nunca se revelando completamente. Uma intriga imparável, de uma tensão permanente, onde os mistérios se multiplicam. Um livro que agarra logo nas primeiras páginas, deixando o leitor em suspenso capítulo atrás de capítulo, conforme se atam umas pontas e se desfazem outras da tapeçaria. Há diversos segredos que vão sendo revelados – muitas vezes indiciados através das miniaturas que misteriosamente vão chegando para completar a casa. Há segredos verdadeiramente chocantes, para a época, que um leitor atento consegue desvendar atempadamente, antes das revelações.
A casa em miniatura não deve ser confundida com uma casa de bonecas, pois era um objeto altamente dispendioso, cujo valor à época equivale, atualmente, a uns 2 milhões. A autora inspirou-se aliás numa casa que encontrou num museu em Amesterdão. Além disso, Petronella Oortman, o nome da protagonista do romance, é tomado a partir não de uma verdadeira Petronella Oortman, mas sim de duas mulheres com o mesmo nome, pois Petronella Oortman, aparentemente, era o nome da criadora, da miniaturista, mas também da dona da cabinet house, a casa em miniatura.
Faça-se, por fim, uma nota relativamente à tradução e sem querer retirar prazer da leitura e desvendar o mistério. Não obstante o título do livro, que nos induz em erro, e apesar de a certa altura o mistério em torno do miniaturista já ter sido amplamente dissipado, deveria fazer-se uma nota para alguns diálogos (como acontece na página 325), que podem deixar o leitor confuso, relativamente à verdadeira questão da identidade de quem criou a casa de bonecas.
A Casa da Fortuna
A Casa da Fortuna, também com tradução de Catarina Ferreira de Almeida, inicia a ação 18 anos depois do final do primeiro volume, justamente no dia do aniversário de Thea, em 1705. Ou seja, a criança que nasce no final de O Miniaturista, completa agora 18 anos e está em idade casadoira. Sem querer estragar a leitura do primeiro romance, ressalve-se que o dia de anos de Thea é toldado pela tristeza de duas mortes que também se assinalam nesse dia. Vive rodeada de pessoas que a amam – o pai, Otto, a tia, Nella, e a ama de leite Cornelia –, embora este trio se pareça desentender permanentemente entre si, particularmente Otto e Nella, cujas discussões ao longo do livro são constantes. A glória da casa, onde havia inclusivamente uma peculiar e dispendiosa réplica em miniatura, feita com os mesmos materiais da casa original, perdeu-se definitivamente. Se antes conseguira manter a casa e a família à tona com o negócio do açúcar, numa gloriosa Amesterdão – que começa também a perder algum brilho, tornando-se mais austera e contida –, Nella vê-se agora obrigada a despir de quadros as paredes da casa, que tenta vender por algumas centenas de florins. Depois de 18 anos a tentar sobretudo providenciar o melhor para Thea, e da mesma forma que a própria Nella se viu obrigada a casar aos 18 anos, para salvar o nome de honra da sua família, Nella não discerne uma alternativa que não seja casar rapidamente a sobrinha. Além disso quer Nella quer Thea se enamoram, tão somente para, logo a seguir, verem as suas esperanças no amor soçobrarem, pois os homens a quem amam traem a sua confiança. Outra semelhança ainda entre Nella e Thea, é a jovem começar igualmente a receber misteriosas encomendas deixadas na soleira da porta, com miniaturas cujo realismo é tão enfeitiçante quanto desconcertante, ao ponto de as suas portadoras se convencerem de que estas miniaturas contêm uma estranha magia, a ponto de terem a capacidade de representar as pessoas que lhes servem de modelo. De resto, Nella e Thea não poderiam ser mais diferentes, nomeadamente pelo espírito mordaz e determinado de Thea, pronta a arriscar tudo em nome do amor, enquanto Nella se conformou com o seu infeliz desenlace, e tendo ficado viúva tão pouco tempo depois do casamento, optou por nunca mais casar, crente inclusivamente de que seria muito mais livre assim. Nella, por seu lado, parece ter adquirido o calculismo e a frieza de Marin, até nas suas réplicas cortantes, e pela forma como reprime os seus sentimentos, talvez por força de ter de controlar os livros-razão que sustêm a casa desta estranha família: “há quanto tempo vivem eles por um fio, o simulacro de uma família abastada? O que serão, afinal, senão uma incómoda reunião de almas que vacilam à beira do abismo?” (p. 199)
Ao longo das primeiras páginas de A Casa da Fortuna, é quase imediata a perceção de que o livro acompanha sobretudo a vida desta jovem, a partir da sua perspetiva, narrando os eventos na terceira pessoa. Gradualmente, Nella retoma alguma da centralidade do romance anterior. Embora Thea se veja tão rodeada de mistérios e segredos na casa onde cresceu, nunca tendo chegado a conhecer a mãe, e sobre a qual sabe muito pouco, é seguro dizer que A Casa da Fortuna não mantém a mesma pujança, lirismo ou suspense de O Miniaturista. Torna-se também claro que este último romance pode ser lido autonomamente, pois há breves notas explicativas referentes à ação do primeiro.
Jessie Burton nasceu em 1982 e vive em Londres. Estudou na Universidade de Oxford e na Royal Central School of Speech and Drama. Trabalhou durante nove anos como atriz, em teatro e televisão, antes da publicação de O Miniaturista, bestseller internacional premiado, traduzido para 36 línguas e adaptado à televisão pela BBC com Anya Taylor-Joy (The Queen’s Gambit) no principal papel.
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