ASELHICE, INCONSCIÊNCIA E INTOLERÂNCIA
Não. Ao contrário do que o título possa sugerir, na véspera de um acto eleitoral e de uma longa campanha que evidenciou o quanto estas três palavras se ajustam à realidade política nacional, o texto de hoje vai muito para lá disso. Tem a ver com algo de mais estrutural como civismo, respeito pelos outros, disciplina e tolerância, condimentos em falta na caldeirada em que se transformou a circulação automóvel nas nossas estradas. Todo o ser humano comete erros, por distracção, por burrice ou inabilidade. Que atire a primeira pedra quem o não fez. Mas há demasiada gente de mãos ao volante que faz da infracção e do desrespeito o seu padrão de comportamento, colocando em risco a sua própria vida e, principalmente, a vida dos outros, quantas vezes gente inocente que não fez nada de errado para merecer triste sorte.
Radares, controles electrónicos, operações stop, polícia na estrada, têm dificuldade em pôr ordem na casa
Segundo as estatísticas do INE referentes ao ano de 2022, circulam em Portugal 7,2 milhões de veículos motorizados, entre ligeiros e pesados, passageiros e mercadorias, automóveis, camiões, tractores, motociclos, reboques, semi-reboques, e traquitanas diversas. Nos embates da chapa, registaram-se 32.000 acidentes, provocando 40.000 acidentes e 462 mortes (70 dos quais, peões atropelados). Comparados com o virar do século, estes números representam uma melhoria substancial, derivada de melhores estradas, melhores viaturas, mais prevenção, mas ainda são demasiado sangue, muita dor, muita lágrima e prejuízos irreparáveis. Este é o lado físico da tragédia. Existe, porém, um outro lado escuro da mesma lua, e que tem a ver com a forma como se circula na rodovia. Talvez pela aceleração em que se vive no mundo de hoje, onde a velocidade e o tempo tudo condicionam, as estradas acolhem todo o tipo de frustrações, de ansiedade, de má formação e falta de educação.
Um estudo recente da Continental/IPAM concluiu que um em cada quatro condutores portugueses têm uma condução agressiva na estrada, com os nervos à flor da pele, e de cuja boca saem chorrilhos de insultos, palavrões dirigidos a tudo e todos os que os cercam, ultrapassam ou atrasam. Gente apressada irrita-se facilmente, buzina por todos os poros do veículo até ao estado de buzinão. A xico-espertice manifesta-se no desrespeito pelas filas de trânsito ao entrar nos entroncamentos, ao passar o vermelho dos semáforos, daltónicos voluntários para quem no amarelo só vê verde. É gente que estaciona nas passadeiras de peões, que circula em contramão nos parques de estacionamento para ganhar vantagem sobre os outros, que entra e atravessa rotundas “à papo-seco”, ignorando as regras específicas de circulação nestes locais. Poucos cedem passagem a quem não tem prioridade, num gesto singelo de gentileza.
A cavalo das motorizadas, gente jovem de todas as idades, mas com igual sentido de aventura e imaturidade, ziguezagueia entre filas de trânsito, ou testa a potência e o ronco das máquinas de duas rodas como se estivesse a competir com o Miguel Oliveira no Autódromo do Algarve. O(a)s maluquinho(a)s do asfalto pressionam o veículo que vai à frente com aproximações perigosas, buzinadelas, sinais de luz. “Arredem, que eu quero passar!…”, como se fosse uma ambulância em passo urgente, ou um cometa rumo ao infinito. Não abrandam, quando chove. Comem, fumam, bebem, telefonam, retocam o rímel, escrevem e lêem mensagens enquanto conduzem. Ultrapassam perigosamente para lá dos limites do bom senso ou do traço contínuo. Não raras vezes, fazem das bermas caixote do lixo. Ignoram a sinalética dos piscas, estacionam onde calha e lhes dá mais jeito. Coexistem na mesma pista a condução defensiva e a condução agressiva.
Nos dias de hoje deixou de haver espaço para a condução normal e descontraída, para usufruir da paisagem. Tampouco há lugar para os condutores de domingo, para as “lesmas” que empatam o trânsito, para quem circula a pisar flores. “Vê-se logo que é um(a) velho(a)!…” – sentencia-se. E o antigo marialvismo que considerava as mulheres condutoras de menor valia, também foi às malvas. A perícia já não tem género, a habilidade e a asneira repartem-se de igual modo. A expressão “vê-se logo que é uma gaja!…” deixou de fazer sentido, ficou obsoleta. Claro que há licenças de condução que não deveriam ser renovadas, pois a idade não perdoa, os reflexos, a visão já não são os mesmos. As regras mudam, mas há pessoas que ficam agarradas ao “antigamente era assim”. Há peões que cruzam as passadeiras sem olhar, ou decidem atravessar no último segundo. O bom condutor adequa a condução ao tipo de estrada, ao tipo de trânsito e ao tipo de condição atmosférica. Esforça-se por cumprir, mas conta também com as asneiras e actos criminosos dos outros. Usa os espelhos, os faróis, farolins e piscas, sinalizando atempadamente as manobras. Para quem conhece mundo, sabe que nada do que aqui fica dito é um exclusivo dos portugueses, ainda há pior, mas isso não nos desculpa por termos transformado as nossas estradas num altar de intolerância, indisciplina e falta de respeito de uns pelos outros.
Radares, controles electrónicos, operações stop, polícia na estrada, têm dificuldade em pôr ordem na casa. Talvez, num dia não muito distante, quando se generalizarem os veículos sem condutor, as aplicações informáticas executem aquilo que os seres humanos não conseguem ou não querem cumprir.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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