Nos últimos meses tive o prazer, deveras masoquista, de traduzir toda a poesia de Hemingway, autor mais conhecido pela sua ficção.
Nesta obra, o autor percorre vários estilos, por vezes até conflituosos, tons e temas diferentes, saltando do formalismo mais rígido para a aproximação a uma esquizofrenia quase surrealista. Aqui desfilam personagens da história e da cultura que Hemingway disseca tal como nos seus romances. De forma visceral e directa encarnando o espírito do título: beber para tornar os outros mais interessantes, porque nele há sempre um misto de resignação fatalista e ao mesmo tempo, a sua celebração.
Não é por estarmos condenados que não devemos divertir-nos até ao fim, mesmo que seja com um tiro nos miolos, forma que Bukowski se referia ao suicídio de Hemingway. Suicídio que poderá ter sido, de acordo com o seu mantra pessoal, a derradeira frase directa e repleta de Hemingway.
Li Hemingway pela primeira vez na adolescência, por recomendação do meu pai, quando andava obcecado com os anarquistas na guerra civil espanhola
Intitulei este livro, cujo nome original era apenas Poesia Completa, de Bebo para tornar os outros mais interessantes, por ser sonante e reflectir bem o que Hemingway foi, e por, simultaneamente, denotar uma atitude que todos temos com diversas variações: sendo a “uso o telemóvel para tornar os outros mais interessantes” provavelmente a mais utilizada actualmente. Por isso e porque fui dotado de um sentido de humor distorcido, apesar de me chatear toda a cultura de promoção do álcool em que vivemos e de eu próprio ter literalmente uma relação distante com o álcool. Mais sobre isto noutra altura.
Li Hemingway pela primeira vez na adolescência, por recomendação do meu pai, quando andava obcecado com os anarquistas na guerra civil espanhola. Comecei mal, com Fiesta, em que um terço do livro fala sobre tourada. Suponho que fosse esperada alguma neutralidade de um tradutor, mas defenderei sempre o touro face à besta do toureiro, não tivesse eu passado grande parte dessa mesma adolescência em manifestações contra a tourada.
Tourada só na cama, caro leitor. E mesmo assim, é preciso estarmos todos de acordo, não é como na arena em que uma das partes é coagida.
Neste livro, como noutros, Hemingway é rude, ofensivo e por vezes machista e racista. Tudo motivos para que um destes dias, o atirem para panteão dos autores cancelados e reescritos. Por isso, e porque também sou perverso e torcido e me recuso ao papel de juiz enquanto tradutor, traduzi os termos ofensivos tal como foram utilizados pelo autor (ou na sua versão correspondente).
Desejo tanto habitar uma realidade em que as pessoas tenham a sensibilidade, empatia e cortesia necessárias para não ofender outros gratuitamente como uma em que não sejamos infantilizados ao ponto de ter de ser protegidos por qualquer entidade exterior perante a dureza das palavras.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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