Jorge Fonseca licenciou-se em Medicina na Universidade de Cape Town e tirou a especialidade primeiro em Anestesia e posteriormente em Cuidados Intensivos em Londres. Mestre em Segurança do Doente pela Escola Nacional de Saude Pública em Lisboa, tem uma paixão pela segurança do doente e educação médica. Chefiou o centro de simulação no hospital onde trabalha desde 2017 deixando esse cargo para chefiar a Governança Clínica da Unidade de Cuidados Intensivos.
P – O problema da segurança do doente é um campo recente, com apenas duas a três décadas, da gestão em saúde, investigação e prática clínicas, mas é cada vez mais uma preocupação formal dos diversos Sistemas de Saúde e seus responsáveis, com liderança dos países anglo-saxónicos…
R – …O problema da segurança do doente não é um campo recente, pois o estudo do Institute of Medicine ‘To Err is Human’ em 2000 identificou que entre 44 mil e 98 mil americanos morriam por ano em consequência de erros nos cuidados de Saúde. Em 2011, um estudo piloto realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) pelo Professor Paulo Sousa e colegas, utilizando a mesma metodologia, apontava para uma taxa de 11,1% de erros médicos em Portugal, dos quais mais de metade (53,2%) eram evitáveis. Cada evento adverso resultou em estadia hospitalar prolongada por 10,7 dias com um custo direto de 470.380 euros. Estes dados não são só números, mas pessoas. Em menos de 0,8% dos casos, os doentes ou familiares foram informados da ocorrência do evento adverso [ou seja, apenas 1 em cada 125 foram informados].
P – O que se sabe sobre a atual situação da segurança do doente em Portugal, em particular no Algarve, e o que tem sido feito em Portugal nas últimas décadas?
R – Não me considero uma autoridade suficiente para dar parecer pormenorizado sobre a atual situação em Portugal, mas posso apontar para iniciativas do meu conhecimento que merecem louvor:
- O Plano Nacional de Saúde 2021-2026 [infográfico em anexo] que cito ‘constitui-se como uma ferramenta de apoio a gestores de topo, lideranças intermédias, CQS gestores de risco e profissionais de saúde (…) de modo a aumentar a segurança da prestação de cuidados de saúde, tendo presente o foco no doente e seus cuidadores.’
- Foi designado na ENSP um centro colaborador da OMS para a Educação, Investigação e Avaliação da Segurança e Qualidade em Saúde para promover a Educação e Investigação na área da segurança do Doente, coordenado pelo autor principal do estudo supracitado.
- O inovador “Curso de Medicina”, da Universidade da Universidade, foi um dos primeiros em 2009 a integrar um currículo de segurança dos doentes transversalmente no programa do curso e na avaliação dos alunos, selecionando alunos não só com excelência académica, mas também com atitudes e aptidões compatíveis com boa comunicação, trabalho em equipa, empatia e dedicação à melhoria continua. O programa de simulação clínica para o treino de competências não técnicas, iniciado em 2009, continua com a abertura de um novo centro de simulação para disseminar não só o treino de competências técnicas clínicas, mas também estratégias de comunicação e trabalho em equipa, incluindo a notificação do erro às entidades relevantes e também a participação do erro aos doentes para melhorar a segurança.
P – Que recursos são precisos disponibilizar para a sua melhor resolução?
R – Só os custos diretos do erro clínico, mais os custos dos processos jurídicos a ele associados, excedem 470.380 euros anuais.
Investimento na segurança do doente faz mais sentido, não só economicamente, mas também em termos dos custos indiretos sociais e económicos. O plano nacional estabelece claramente os princípios a aplicar para reformar as práticas. Deveriam receber prioridade máxima:
- a liderança dos serviços com o envolvimento dos órgãos de topo da gestão;
- a notificação e gestão de todos os eventos adversos;
- a formação dos profissionais nas três áreas.
P – Em caso de suspeita de erro clínico ou medicamentoso com consequências graves para um doente, que procedimentos são ou podem ser ativados?
R – Em Portugal atualmente existe um sistema da DGS para notificação de eventos adversos de forma anónima e confidencial, podendo o sistema ser utilizado pelos profissionais de saúde e pelos doentes ou familiares. Podem notificar qualquer preocupação com a prestação de cuidados de saúde. O sistema pode ser acedido por telemóvel ou computador pessoal em qualquer lugar através de https://notifica.dgs.min-saude.pt/.
Mesmo apenas a suspeita do erro sem consequências adversas graves – os ‘near misses’ – deveriam ser notificados porque apontam para uma área dos cuidados de saúde com alguma fragilidade que poderia ser melhorada, prevenindo a repetição do mesmo erro. É fundamental fazer a transição de ‘quem é que fez asneira’ para ‘como é que isto aconteceu’ – uma atitude que não culpabiliza individualmente o profissional e que permite uma maior transparência absolutamente necessária para tornar os cuidados mais seguros. Todos os estudos apontam para uma taxa de erro de 10%: todos os profissionais, mais tarde ou mais cedo, vão errar alguma vez. Eliminar o erro não é possível, mas montar sistemas para evitar que os erros causem danos aos doentes é obrigatório.
P – A fazer fé nas sentenças de tribunal e nas investigações da Ordem dos Médicos, os casos de “erro/negligência” médica são praticamente inexistentes em Portugal. Em Inglaterra, por exemplo, onde reside atualmente, também não há condenações por “erro/negligência” médica?
R – Em Inglaterra, as condenações individuais são raras e em geral são conduzidas pelos tribunais porque se trata de indivíduos com intenção de fazer mal.
Os erros e os casos de negligência médica são geralmente notificados e investigados localmente, mas por investigadores com formação sobre a segurança do doente e conhecedores dos fatores humanos conducentes ao erro ou à negligência. Fazem-no com uma abordagem sistemática (‘como é que aconteceu’, não ‘quem fez a asneira’). Há uma obrigação legal do clínico de participar ao doente ou seu familiar qualquer erro significativo que tenha ocorrido. Há também a obrigação legal de levar o caso a um tribunal especial (Coroner’s Court) que determina a causa de morte. O juiz [‘coroner’] pode emitir um alerta para as entidades de saúde envolvidas no caso, ou até para todo o país, sobre qualquer situação que requeira uma melhoria nos procedimentos, mesmo sem atribuir culpabilidade. Todas as mortes, inesperadas ou não, que ocorrem em ambiente hospitalar, são obrigatoriamente avaliadas por um médico independente especialmente nomeado, o ‘Medical Examiner’, que faz parte da equipa do ‘Coroner’ e não do hospital envolvido, e que tem poderes para pedir aos investigadores hospitalares quaisquer dados relacionados com o doente falecido, incluindo pormenores de todas as manobras terapêuticas ou de diagnóstico que o doente recebeu. Os familiares têm acesso direto ao ‘Medical Examiner’ e podem questionar qualquer aspeto que considerem insatisfatório nos cuidados que o seu familiar recebeu.
P – Qual a grande vantagem de notificar erros médicos aos doentes?
R – Ao contrário do que poderia ser expectável, quanto mais os erros são notificados aos doentes, menos são os processos judiciais e queixas contra hospitais e médicos, esta é a experiência prática que acontece nos EUA e no Reino Unido. Por exemplo, os médicos britânicos são pagos seis em cada quarenta horas para atividades de ‘governança’, isto é, para reuniões de mortalidade e morbilidade, auditoria de indicadores de qualidade e casos difíceis.