No dia 24 de fevereiro assinalou-se já um ano de guerra, desde que a Rússia invadiu a Ucrânia. Neste triste contexto histórico, apresentam-se dois romances poderosos e fortíssimos, ambos de autores nascidos na Ucrânia, que lançam luz sobre aquele território que volta a ser palco de guerra.
Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, é um relato na primeira pessoa da desumana ocupação de Kiev pelos alemães. Stalinegrado, de Vassili Grossman, traça um ambicioso fresco da Rússia soviética, com incidência nos anos da Segunda Guerra Mundial, na ofensiva alemã e na defesa e, depois, na contraofensiva soviética, que culminou na libertação de Stalinegrado e dos territórios ocupados pelos nazis.
Em Stalinegrado é inclusivamente possível ler uma passagem onde se refere Bábi Iar e se descreve o momento em que as tropas soviéticas abandonam a capital da Ucrânia, depois de testemunharem a destruição causada pelos soldados nazis: “Era terrível o choro das mulheres, a tácita pergunta nos olhos dos velhos, o desespero nas caras de centenas de pessoas…” (p. 222)
Estas duas grandes obras aqui propostas são testemunhos históricos e leituras de tirar o fôlego que ajudam a colocar em perspetiva os vários lados de uma batalha onde, no confronto de poderes, quem perde é sempre o povo.
Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov
Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, é agora publicado pela primeira vez em Portugal pela Livros do Brasil numa versão integral não censurada. A tradução é de Jorge Rosa e a revisão de Manuel Reis. A coleção Dois Mundos continua assim, há que dizê-lo, a ganhar destaque no campo editorial com uma excelente oferta de obras inéditas, mas também com a reedição de romances já conhecidos do público leitor.
A reedição deste livro, em outubro do ano passado, torna-se ainda mais atual com a inclusão de uma introdução por Irene Flunser Pimentel que contextualiza este romance no atual momento histórico.
Há inclusivamente uma passagem no romance que o torna tão atual quanto premonitório: “Não escrevi este livro simplesmente para relembrar o passado: escrevo hoje sobre a ocupação de Kiev, que testemunhei e que está bem documentada; porque a mesma espécie de acontecimentos está a suceder agora; e não há qualquer garantia de que não voltem a acontecer amanhã episódios ainda mais sinistros.” (p. 396)
Documento em forma de romance
«Esta edição de Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, publicada pela Livros do Brasil, é diferente e complementar da versão que a mesma editora deu à estampa em 1970. Enquanto esta se baseava na tradução da versão soviética de 1966, censurada pelas autoridades, a atual tem origem no livro completo com o mesmo título, Bábi Yar, publicado em 1970, nos EUA, depois de, no ano anterior, o autor se ter exilado para o Reino Unido», explica Irene Flunser Pimentel na Introdução.
Não obstante a dimensão – quase 500 páginas – e a temática do livro, é um romance apaixonante, que se lê de um fôlego, que retrata uma cidade e um país destruídos pela guerra, pela perspetiva de uma criança. Criança essa que, há que dizê-lo, é, desde tenra idade, um voraz leitor que, mesmo em tempos de guerra, procura avidamente o que possa aproveitar entre as pilhas de livros que vê serem destruídos.
Como nos é anunciado, logo no Prefácio, assinado pelo autor, a cujas primeiras linhas, nos fará regressar mais do que uma vez: “Tudo o que este livro contém é verdadeiro”. Num dos vários capítulos em que o autor interpela directamente o leitor (designados justamente «Fala o Autor»), podemos ler: “Devo lembrar-te uma vez mais que nada disto é inventado; aconteceu, de facto. Nada se inventa, nada se exagera. Pelo contrário, omito, até, certos pormenores da carnificina, (…) nada há neste livro que de longe se assemelhe a invenção literária.” (p. 300)
Mais do que um romance, Anatóli Kuznetsov classifica assim Bábi Iar como um «documento em forma de romance», consoante o subtítulo explicita. E é um facto que, ao longo da narrativa, são vários os recortes de documentos, notícias e anúncios de que o autor faz uso, para compor e dar veracidade ao texto. Recorre-se ainda a testemunhos de outros sobreviventes, que conferem uma veracidade pungente ao texto, e há passagens que nos atingem como um murro.
Entre os doze e os catorze anos, enquanto era «um faminto e assustado rapazinho», a sua luta pela sobrevivência, cujo relato vivo nos assombra ao longo destas páginas, não impediu o autor de compilar notas sobre o massacre que ocorreu no que tinha sido até então o seu local de brincadeiras. Nas primeiras páginas, podemos ler como dá por si a pisar um campo de cinzas e ossadas humanas…
Em setembro de 1941, as tropas nazis conquistaram Kiev. Fascinada pela elegância dos soldados alemães ou esperançosa na reconquista do exército soviético, a população dividiu-se. Anatóli tinha então doze anos e assistiu à discordância no seio da própria família; o avô era um simpatizante germânico, que via a Alemanha como sinónimo de progresso e ordem, enquanto a Rússia significava fome e repressão, contudo, ao longo do livro, arrepender-se-á profundamente e muda de opinião.
O horror banaliza-se
Os dias passam e a esperança dá lugar ao horror, conforme se torna claro que o território de Bábi Iar – nome dado pelos alemães e depois mantido pelos soviéticos – passa a ser palco de um crime terrível. Soube-se ainda, mais tarde, que se estava a montar ali uma fábrica experimental para transformar os mortos em sabão – o que nos recorda, uma vez mais, como, mais do que o horror da guerra, capaz de dizimar milhões de vidas humana, é a forma cerebral e desumana como se tentou converter a guerra numa máquina de lucro.
Entretanto, em Kiev, o horror generaliza-se e banaliza-se. Queimam-se livros (o que é sempre um sinal do princípio do fim dos tempos); incentiva-se que as pessoas não tenham educação em excesso; os disparos não cessam, ao ponto de se tornarem um ruído de fundo que acompanha o pulsar dos dias; abrem-se valas comuns; convocam-se os judeus, que não percebem bem que se encaminham para o seu fim, depois os ciganos, depois todos aqueles que se designam como “inimigos do povo”, até que não haja mais povo para chacinar…
Estes acontecimentos terríveis são filtrados pela perspe tiva inocente de uma criança que, inevitavelmente, dá por si a despedir-se da infância e a perder a inocência. O seu dia-a-dia passa a girar em torno de algo tão primal como sobreviver – e o que é certo é que ele conseguirá, de facto, escapar às balas, às bombas, às patrulhas –, e algo tão instintivo como conseguir encontrar o que comer, ou conseguir ganhar algumas moedas, de modo a ter algum sustento para a família. A fome é uma constante sensorial e descritiva que perpassa as páginas deste romance de forma incrivelmente nítida. Uma fome capaz de levar as pessoas ao canibalismo.
Versão censurada
Em 1961, Anatoli Kuznetsov submeteu o seu testemunho deste período às autoridades soviéticas. A primeira edição de Bábi Iar saiu em 1966, numa versão censurada pelas autoridades russas. O texto integral seria depois publicado em 1970, sob o pseudónimo A. Anatoli, já após a fuga do autor para Londres, onde trabalhou como repórter para a Radio Liberty. Anatóli Kuznetsov faleceu na capital britânica em 1979.
Nesta versão integral não censurada da Livros do Brasil, são destacadas a negrito as passagens que foram acrescentadas ou significativamente alteradas, o que permite facilmente aos leitores identificar as diferenças entre versões, na presente edição. Na verdade, mais do que passagens, temos, por vezes, várias páginas de texto originalmente censurado. É o caso do «Prefácio», onde o autor conta como, quando apresentou o manuscrito original a uma revista de Moscovo, este devolvido imediatamente com a advertência de o não mostrar a ninguém até ter removido toda «a tralha antissoviética» que continha.
A leitura confrontada do texto integral sobreposto com a versão censurada dá-nos assim, como afirma Irene Pimentel, uma lição sobre o poder da censura e, sobretudo, sobre o que considera importante cortar num texto.
“Aqui está, finalmente, o que realmente escrevi” (p. 20), conclui o autor no final do seu Prefácio.
Bábi Iar, um importante testemunho sobre a ocupação nazi de território soviético, confere uma nova luz aos acontecimentos mais recentes na Europa. Além disso, desvela acontecimentos terríveis na Ucrânia que se tentou apagar da face da História, por mais do que uma vez – ironicamente com consequências desastrosas.
Anatóli Kuznetsov nasceu em Kiev, na Ucrânia, a 18 de agosto de 1929, filho de pai russo e mãe ucraniana. Aos catorze anos, começou a registar os acontecimentos que testemunhou sobre o massacre de Bábi Iar, perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial.
Stalinegrado, de Vassili Grossman
Stalinegrado, de Vassili Grossman, é um portentoso romance, e não nos referimos apenas à sua dimensão enquanto cartapácio de quase 800 páginas numa letrinha miudinha. Imenso na dimensão humana, histórica, lírica, metafísica, ao constituir um ambicioso fresco das vidas dos russos em primeiro plano, com a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo.
Publicado pela primeira vez em Portugal pela Dom Quixote, com tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Stalinegrado é o primeiro de dois romances – igualmente volumosos – que focam a vida dos russos na linha da frente. Vida e Destino, sequela de Stalinegrado, considerado a sua obra-prima, foi um livro considerado tão perigoso na União Soviética que não só o manuscrito como também as fitas com que foi digitado foram confiscados pelo KGB, permanecendo desaparecido durante vinte anos. Designado como o Guerra e Paz do século XX, este díptico levou a equiparar Grossman com Tolstói, por adoptar uma estrutura global de modo a constituir um imenso fresco da Rússia soviética, e assim contar a História global através das histórias individuais de uma ampla galeria de personagens.
Patriotismo soviético
A perspetiva de Grossman é a de um patriota soviético, com passagens narrativas que denotam fortemente esse patriotismo: “O êxito inicial obnubilou Hitler, impediu-o de ver a natureza daquele granito, daquelas forças espirituais e materiais contra as quais se levantara. Não eram forças ilusórias, eram as forças de um grande povo que lançou os alicerces do futuro mundo.” (p. 24) Há momentos em que quase sentimos que o autor escreve ao serviço do regime, como quando prenuncia que na batalha de Estalinegrado a “defesa rija” não tem comparação com nenhuma outra da História, nem mesmo “nos tempos da batalha de Troia, nem na batalha das Termópilas” (p. 137). Ainda assim, o autor foi censurado e só viu o seu romance publicado depois da morte de Estaline.
Em abril de 1942, Hitler e Mussolini planeiam a enorme ofensiva na Frente Oriental que culminará na maior e mais sangrenta batalha da história da humanidade. O romance abre justamente com um encontro em Salzburgo entre estas duas figuras, que são também personagens do romance, ao planear novo ataque à União Soviética.
Durante meses, as forças soviéticas são repelidas pelo avanço das tropas alemãs, e Stalinegrado é tudo o que resta entre os invasores e a vitória. A situação “grave e perigosa do país, do povo, do Estado tinha uma ligação direta precisamente com a Frente Sudoeste, hoje renomeada Frente de Stalinegrado” (p. 134). Entretanto, também chegam ecos da situação desesperante de Leninegrado, “oprimida pela fome, pelo fogo e pelo gelo”, mas continuava a resistir “havia trezentos dias” (p. 187).
Romance épico
Stalinegrado intercala a natureza de um romance épico com um registo quase documental do evoluir da guerra. A intriga centra-se na história de uma família de classe média, os Chapochnikov, cujos diversos membros serão dispersos pelas forças da guerra e acasos do destino entre a Alemanha e a Sibéria. No centro da família, e no coração do romance, situa-se Aleksandra Vladímirovna, a matriarca que se recusa a deixar a cidade, apesar do avanço dos nazis. Longe da frente, Liudmila, a sua filha mais velha, vive um casamento infeliz com Víktorov Strum, um físico judeu que embora preocupado com a mãe, perdida algures na Ucrância, por trás das linhas alemãs, mantém-se determinado numa investigação científica que pode ser determinante como estratégia militar. A extensa galeria de personagens continua quase infindamente (ainda que sem chegar às 500 personagens de Guerra e Paz), desafiando a atenção do leitor, sem que este se perca, pois a leitura desta obra imensa (que se poderia temer como densa) corre o risco de se tornar viciante.
A narrativa torna-se menos romanceada quando a história da família Chapochnikov alterna com uma cuidadosa reconstituição da batalha de Stalinegrado, desde os seus primórdios, com a iminência da ameaça do invasor alemão, até a campanha acelerar, resultando na derrota do Exército Vermelho, obrigado a recuar para o centro industrial da cidade, nas margens do Volga. É aí, nos escombros da cidade bombardeada, que os soviéticos conjugam forças para um derradeiro acto de resistência.
Um leitor atento pode constatar como a cidade de Stalinegrado é, mais do que um cenário, a grande protagonista do romance. Há várias passagens descritivas que acusam um tom nostálgico e de estima por esta “estranha” cidade onde as ruas têm nomes de todas as cidades da União Soviética (p. 95). Mas, ao longo das centenas de páginas deste livro fascinante, a violenta batalha por Stalinegrado irá reduzir a cidade a escombros e marcar a vida de todos os envolvidos.
Vassili Grossman nasceu em 1905, na Ucrânia (em Berditchev, terra judaica, onde a sua própria mãe foi uma das vítimas do extermínio de judeus pelos nazis, em 1941-1942). Foi viver para Moscovo ainda jovem. Nos anos 1930 formou-se em engenharia química mas começou a dedicar-se exclusivamente à escrita desde essa altura. Em 1941, tornou-se correspondente do Estrela Vermelha, jornal do Exército Vermelho, com reportagens sobre a defesa de Stalinegrado, a queda de Berlim e as consequências do Holocausto.
Grossman morreu em 1964, em Moscovo.