O Postal do Algarve entrevistou António Nóbrega, conhecido urbanista, com vários livros e centenas de trabalhos científicos publicados sobre urbanismo e ordenamento do território. Em parceria com o Jornal Postal do Algarve, a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária (APEMIP) e a Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), promoveu uma importante conferência sobre a lei que permite construir em prédios rústicos.
A controvérsia gerada pelo diploma na comunicação social, o impacto do tema na sociedade, pela sua relevância e transversalidade na gestão do território, despertou o interesse do público, assim como de advogados, arquitetos e engenheiros, cujas ordens profissionais estiveram representadas por oradores no evento. Foram ainda debatidos problemas existentes nesta matéria, em articulação com a atividade turística.
Participaram também a AHETA, a APEMIP – mediadores imobiliários – e a Associação de Regantes do Sotavento Algarvio, representada pelo engenheiro Macário Correia. A sala do Hotel Alísios, em Albufeira, revelou-se pequena para acolher todos os interessados.
P – Os sucessivos governos têm realizado esforços para minimizar a crise habitacional, implementando diversas medidas, entre as quais a publicação de legislação que introduz alterações importantes no sistema de planeamento do território, sendo a mais recente a lei que permite construir em solos rústicos. Qual a sua opinião sobre esta legislação?
R – A lei em causa, que regula a aprovação e alteração de planos urbanísticos municipais, designada por RJIGT, sempre permitiu aos municípios, antes deste diploma, criar novos ou alterar planos municipais, por razões devidamente justificadas, tendo como objetivos dinamizar a oferta de habitação, equipamento social, infraestruturas, espaços culturais, de atividades económicas, industriais, ou com outra finalidade, ocupando, inclusivamente, algumas das zonas imperativas das Reservas Agrícola (RAN), ou Ecológica (REN), desde que seja obtido o parecer favorável das entidades responsáveis pela gestão destas áreas, ou mediante o reconhecimento de interesse público.
P – Nesse caso, por que razão os municípios, sobretudo os que enfrentam graves problemas habitacionais, não iniciaram procedimentos para aprovar ou alterar planos com vista ao aumento da oferta de habitação?
R – O processo administrativo para aprovação ou alteração destes planos era e continua a ser, complexo e moroso, decorrendo normalmente durante longos anos. No entanto, tendo em consideração a grave crise habitacional, nada impedia as autarquias de iniciar o processo de aprovação ou alteração de planos municipais para aumento do parque habitacional, promovendo esforços no sentido de concretizar tais planos, da forma mais célere possível. As entidades intervenientes colaborariam, com toda a certeza.
Sempre existiu a possibilidade de serem utilizadas áreas, não imperativas, localizadas ou não, na RAN ou na REN. Com a publicação do D.L.117/2024, o legislador simplifica o processo de aprovação destes planos, desde que destinados a habitação, respetivos equipamentos e sejam cumpridos os condicionamentos impostos neste normativo.
P – Significa que esta lei veio simplificar o processo de aprovação ou alteração dos planos municipais, para construção de habitação. Em que termos?
R – O próprio D.L. 117/2024, refere que, para construção de habitação em 70% da área total construída, será possível recorrer ao processo simplificado para aprovação dos instrumentos regulamentares. A grande diferença neste aspeto reside na atribuição de poderes exclusivos ao município para aprovação destes planos ou unidades de execução, o que não acontecia na versão anterior da lei, a qual impunha a participação de um número considerável de entidades públicas externas aos municípios.
P – Muitas organizações profissionais e até institucionais não concordam com este diploma. Quais os principais inconvenientes resultantes da aplicação desta legislação?
R – Em primeiro lugar, os princípios universais e essenciais que sustentam o sistema de planeamento e gestão do território direcionam a atuação das entidades responsáveis, no sentido de evitar a todo o custo a impermeabilização do solo, bem como, a construção em solo rústico, pelas mais diversas razões.
Primeiro, porque em todos os aglomerados populacionais existem espaços urbanos ou quarteirões abandonados, degradados ou subaproveitados. Estas áreas devem ser reabilitadas e ocupadas, na medida em que possuem as infraestruturas necessárias, evitando os encargos com a implementação de novas redes viárias, de abastecimento de água, saneamento, eletricidade, entre outras, em zonas rurais, evitando ainda a impermeabilização de solos.
Em segundo lugar, a imagem dos centros urbanos desertificados e degradados transmite a sensação de insegurança e reflete uma desorganização urbanística inadmissível numa sociedade moderna. Depois, a fixação das populações nas periferias – Urban Sprawl – acarreta inconvenientes de vária ordem, obrigando os moradores a deslocar-se diariamente para os espaços de atividades económicas ou de serviços, com todos os inconvenientes em termos de encargos financeiros, poluição, degradação da vida familiar, entre muito outros.
“Do respeito pelo território dependem a segurança, a saúde, o ambiente, a água, a energia, as comunicações, o trabalho, a educação, a cultura, enfim, toda a nossa vivência e a qualidade da nossa vida”
P – Esta lei contribuirá para minimizar a crise habitacional?
R – É possível que seja reforçada a oferta de habitação, mas não nos podemos esquecer que a crise provoca a inflação, ou seja, dificilmente fará baixar o custo da habitação, quaisquer que sejam os sistemas de controlo de mercado. O investidor, mediante a escassez da oferta, só excecionalmente optará por construir a preços regulados, quando o mercado lhe permite, com o mesmo esforço, obter melhores resultados do investimento, inclusivamente, em zonas em que a lei já permite a construção. Esta possibilidade promoverá, sem dúvida, a especulação imobiliária.
Convém ter em conta que, apesar da lei em 2015 ter obrigado os municípios a eliminar dos seus planos as zonas urbanizáveis, ainda existem no país cerca de noventa mil hectares de áreas já destinadas à urbanização, ou seja, onde é permitida a edificação, sem recurso aos mecanismos instituídos pelo DL 117/2024, o qual permite construir em solos rústicos.
P – Consta, em várias publicações de referência, que não existe no país falta de habitação, mas sim de oferta a custos acessíveis às classes média/baixa. Será assim?
R – O Plano “Construir Portugal”, que integra o PRR, pretende construir 26.000 habitações até 2026. De acordo com os dados do INE, há 723 mil alojamentos vagos. Destes, 375.000 não estão disponíveis para venda ou arrendamento.
Naturalmente, por razões várias, não se mostra tarefa fácil colocar no mercado estas unidades, porém, não identificamos mecanismos políticos, fiscais ou sociais eficazes, com o objetivo de disponibilizar, pelo menos, uma parte dessas habitações. Promover com eficácia e objetividade a reabilitação urbana, financiando e isentando de impostos, com medidas concretas e simplificadas, seria uma das soluções.
Regular, efetivamente, a atividade bancária no financiamento à habitação seria fundamental.
P – Nunca se debateu tanto o planeamento e a gestão do território como após a publicação desta lei que permite construir em solos rústicos. Porquê?
R – O território sustenta a existência da vida, ou seja, de todas as formas de vida. Daí a sua importância e a justificação para toda esta controvérsia. Na educação e na cultura da cidadania, não se compreende a inexistência de bases estruturais de ensino sobre a importância do solo, do território e da sua sustentabilidade. A realidade mostra-nos, que não tem sido prestada a atenção devida ao planeamento e à gestão do território. Tudo na nossa vida depende da forma como administramos a rua, o bairro, a cidade, ou o país. Do respeito pelo território dependem a segurança, a saúde, o ambiente, a água, a energia, as comunicações, o trabalho, a educação, a cultura, enfim, toda a nossa vivência e a qualidade da nossa vida. Esta lei veio chamar a atenção para a importância de problemas de natureza territorial, como a habitação e a sua importância na vida do ser humano, realçando o respeito devido pelo espaço rural disponível e indispensável à segurança e à sustentabilidade que temos a obrigação de garantir às gerações futuras.
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