Estando iminente a abertura do primeiro concurso de apoio financeiro à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (criada em 2021 pela tutela da cultura), importa traçar um panorama global e identificar os principais desafios desta nova rede cultural, sendo a coesão territorial um dos mais vitais.
Recorde-se que, no âmbito de mapeamentos prévios realizados em 2020 e 2021 pelo Ministério da Cultura, foi, desde logo, possível identificar um universo de cerca de 120 entidades (entre fundações, museus, centros de arte, galerias e outros contextos similares ou plataformas de criação) na área da arte contemporânea, decorrendo daí algumas ilações mais imediatas: a visível multiplicidade e pluralidade de espaços, dinâmicas, escalas e recursos; uma claríssima concentração territorial destas instituições (e das colecções do Estado) na Área Metropolitana de Lisboa, Centro e Norte; e o facto de muitas entidades não possuírem colecções (próprias ou cedidas/protocoladas), algo transversal a todo o país.
Os resultados dos últimos concursos realizados pela Direcção-Geral das Artes a nível de apoio sustentado (2023-2026) e apoio a projectos (2022) para a área das artes visuais (nos domínios da criação e programação) revelam igualmente o facto de a maioria das entidades/projectos apoiados se enquadrar nas regiões do Norte, Centro e Área Metropolitana de Lisboa, com uma incidência substancialmente menor nas zonas do Alentejo, Algarve e ilhas, sendo de notar também o reduzido número de candidaturas provindas destas últimas zonas geográficas.
O processo de adesão à RPAC, encetado no último quadrimestre de 2022 e ao qual foram submetidos um total de 78 pedidos, não alterou, de resto, esta percepção geral no que toca à distribuição territorial das entidades ligadas à arte contemporânea. Dos espaços já incluídos na RPAC, 24 situam-se na região Norte (dos quais 14 estão na Área Metropolitana do Porto), 16 na metrópole de Lisboa e 14 no Centro, ao passo que 6 estão sediados no Alentejo, 3 no Algarve, 2 na Madeira e 1 nos Açores. Confirma-se, assim, uma cobertura mais irregular, rarefeita e contrastante desta rede no território nacional – até quando cotejada com a geografia da rede de teatros, esta, ainda assim, mais distribuída e equitativa.
Mas os desafios da RPAC não são apenas do foro territorial/geográfico. Um deles prende-se com a maior valorização dos projectos expositivos monográficos, até porque o desiderato da circulação tende, muitas vezes, a colocar a tónica nas exposições colectivas. Há em Portugal uma assinalável falta de disseminação de projectos artísticos monográficos ou duais, os quais se revelam cruciais para um efectivo desenvolvimento das carreiras dos artistas e curadores, e para a produção de conhecimento (especializado e de sensibilização de públicos) sobre o labor dos criadores.
Nesta linha, será muito importante que a rede apoie projectos que sejam apresentados em todas as entidades que os desenvolvem, isto também para que as propostas de itinerância exportadas pelas instituições de maior dimensão não constituam a realidade dominante ou mais valorizável na RPAC. E que haja igualmente uma preocupação em projectar extensões desses projectos para uma dimensão internacional. Nunca será demais frisar que os projectos a desenvolver e a apoiar no seio da rede devem fomentar a efectiva cooperação entre os seus membros (e as respectivas equipas), sempre num estreito alinhamento com as especificidades de cada espaço e do seu território de implantação.
A adopção de conceitos curatoriais partilhados a partir da obra de um criador, em que cada espaço contribui com obras das suas colecções para esse fito, promoverá exposições alargadas no território, irrigando o ecossistema com trabalhos sempre novos que multiplicam as visões sobre os artistas. Isto permite, por um lado, uma ligação mais directa dos projectos expositivos às comunidades e, por outro, que curadores e directores de entidades mais pequenas tenham a oportunidade de trabalhar com grandes instituições e em escala.
Urge ainda uma atenção especial à promoção e difusão do trabalho das camadas artísticas jovens (emergentes, pós-emergentes, já com algum reconhecimento), dos recém-formados, integrando-os nos diálogos da contemporaneidade (naturalmente global e internacional) e sublinhando os traços e idiossincrasias da produção artística portuguesa. É muito relevante valorizar positivamente as instituições que na sua programação cultural integrem projectos que contemplam este eixo específico de intervenção.
A criação de (mais e regulares) ligações com o meio universitário, nos campos da curadoria e conservação, carece igualmente de aprofundamento. Daí a importância de, por um lado, se estabelecerem protocolos entre a rede e os cursos de curadoria e conservação, e, por outro, se fomentar a sua ligação a programas de investigação e de mentoria em arte contemporânea – algo benéfico quer para as instituições desta área quer para os contextos formativos. Essas parcerias estratégicas deverão estender-se também aos campos do design, comunicação, marketing, história, museologia, ciência, tecnologia e gestão documental.
Espera-se ainda que esta nova rede fomente uma maior capacitação e profissionalização do sector das artes visuais em contextos institucionais (onde existem acentuadas lacunas, mormente fora das metrópoles lisboeta e portuense), implementando programas nessa linha (à imagem, aliás, do que já acontece com a rede de teatros), e que explore também porosidades e transversalidades com o segmento do turismo de arte, o que pode contribuir também para uma maior alavancagem, fluxo económico e atractividade em torno da arte contemporânea.
Por fim, é essencial que a RPAC contribua para uma reflexão-acção aturada e urgente em torno da questão da coesão territorial. Se é um facto que a rede vai actuar no universo já existente (os equipamentos aderentes e respectivos planos programáticos), é preciso também um olhar para o futuro, para o que não existe ainda e seu potencial imanente (a manifesta carência de espaços institucionais e eventos de arte contemporânea em determinadas geografias, por exemplo), o que pressuporá um tipo de intervenção mais estrutural e musculado, recorrendo-se a mecanismos específicos de discriminação positiva a nível territorial e a parcerias fortes e mais directas e assertivas entre a administração central e as autarquias.
Recorde-se que das sete NUTS II existentes em Portugal, há, pelo menos, quatro (Alentejo, Algarve e regiões autónomas dos Açores e da Madeira) que, em termos globais e não obstante algumas excepções relevantes que são conhecidas, denotam, no que se refere especificamente à arte contemporânea,um défice acentuado quer em termos de espaços institucionais sólidos e robustos (museus e centros de arte públicos) e de recursos humanos especializados, quer de organizações artísticas independentes devidamente estruturadas e de vincada implantação local, bem como de bienais, feiras e/ou festivais artísticos de referência, com expressão nacional e internacional. Falta também uma articulação mais continuada e transformadora entre as instâncias da criação artística, gestão/programação e investigação/ensino, bem como um investimento financeiro assertivo e mais direccionado das autarquias, comunidades inter-municipais e Estado central no universo das artes visuais, plasmado também em parcerias e acordos estratégicos em escala maior.
É premente aprofundar e ir mais além na relação de determinados territórios-comunidades com o universo – ainda tido, não poucas vezes, como inacessível, hermético, complexo ou distante – das artes visuais (e seus cruzamentos disciplinares), desmistificando ambientes institucionais, desconstruindo preconceitos, arriscando novas abordagens criativas, desenhando intersecções inesperadas, “descomplicando” a comunicação e apostando vincadamente numa dimensão crucial: a mediação artística. Invista-se, para tal, mais ambiciosamente na democratização do acesso à arte contemporânea e à respectiva formação e educação artística, não só em termos geográficos, como nos planos etário e socioeconómico, promovendo a facilitação, a proximidade, a participação e a inclusão a pensar nos diferentes públicos.
Ancorada no seu mundo “silencioso”, que a arte contemporânea possa, como diria Zola, viver em voz alta.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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