“Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome!”
Gil Vicente in “Auto da Feira”
Os séculos XV e XVI foram excepcionais em todas as áreas da cultura portuguesa.
O País orgulha-se da sua produção artística humanista e dos monumentos do Renascimento, hoje os mais visitados.Em oito séculos não houve época de igual importância cultural e científica, mas surgiram também problemas demográficos, étnico-religiosos… luzes e sombras.
Foram séculos em que Portugal contou com uma direcção política informada e culta, avançada nos conhecimentos, aberta ao mundo e às ideias, que investiu nas ciências, náutica, cartografia, astronomia, matemáticas, medicina, botânica, arquitectura, pintura, música, teatro, …
O Reino dispôs dos meios resultantes do comercio com a África, as Índias e as Américas.
Nas décadas de Quinhentos surgiram o “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende, primeira colectânea de poesia, os autos de Gil Vicente e o novo teatro, a poesia de Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda, a história de Damião de Góis, a primeira gramática da língua portuguesa de João de Barros, “Os Lusíadas” de Luís de Camões, estudos da arqueologia romana de André de Resende, as obras de botânica e farmacêutica de Garcia da Orta, a cartografia de Pedro e Jorge Reinel, Vaz Dourado, o primeiro historiador da arte António de Holanda, arquitectos como Diogo Boitaca (Setúbal), João de Castilho (Jerónimos), Francisco Arruda (Torre de Belém), Diogo Torralva (Tomar), pintores Jorge Afonso, Grão Vasco, Gregório Lopes,… e muitos outros.
Foi ainda também um período sombrio para o pensamento humanista, consequência do Concílio de Trento e da instauração do Santo Ofício. Surgiram as perseguições político-religiosas, expulsão e conversão forçada das minorias mouriscas e judaicas, a confiscação de bens, autos de fé, um obscurantismo que marcou o retrocesso económico e cultural do País por séculos.
Damião de Góis foi preso pela Inquisição, morreu em Alenquer abandonado e em circunstâncias estranhas, Garcia da Orta foi postumamente condenado por judaísmo e os seus restos mortais queimados num auto de fé, João de Barros e Luís de Camões morreram na miséria…
E o Algarve? As “visitações” deram notícia do espólio artístico existente nos templos de várias cidades, historiadores de arte identificaram na arquitectura as presenças de Afonso Pires em Faro (Convento de N. Sra da Assunção), de André Pilarte em Tavira (Misericórdia), de António Rodrigues em Lagos (São Sebastião), entre outros. A extraordinária biblioteca existente em Faro e pertença do bispo D. Fernando de Mascarenhas, conhecida por Bodleyana, foi roubada no assalto dos ingleses em 1596 e encontra-se parte dela em Oxford.
A figura de referência do século XVI no Algarve terá sido o bispo Jerónimo Osório (1506-1580).
Osório, bispo de Silves entre 1564 e 1577, viveu a turbulência da transferência da sede da diocese para Faro, continuou bispo até 1580, ano da sua morte em Tavira. Escrevia, segundo os especialistas, num excelente latim facilmente lido e editado nos meios intelectuais europeus.
O pai foi Ouvidor-Geral do Reino na Índia e Jerónimo enviado aos 13 anos para Salamanca, seguiu para Paris onde fez estudos aristotélicos, esteve em Bolonha, conheceu Loyola fundador da Companhia de Jesus, regressou a Portugal assumindo cátedra na Universidade de Coimbra.
Borges Coelho considera que o Algarve “teve a sorte de ter um prelado reformador”, contudo pairam interrogações sobre as suas práticas e omissões, na colaboração com o Santo Ofício. Investigadores que estudaram o processo da Inquisição contra Frei Valentim da Luz, pároco do Convento da Graça em Tavira, referem que o Bispo Osório deu o seu parecer neste processo…
Valentim da Luz acabou morto na fogueira em Lisboa a 10 de Maio de 1562. Seria justo que o Algarve lhe prestasse homenagem, como um símbolo das vítimas da intolerância.
A história da cultura no Algarve encontra-se por realizar. Política e gestão cultural fundamentadas implicam investigação interdisciplinar continuada do fenómeno cultural.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico