A poesia é demasiadas vezes pretexto para os mais atrozes crimes artísticos. Onde outrora ardia a asa negra, se intumescia o chifre e de onde nascia o grito do maldito, brota agora uma suave e confortável chama que não inflama nem queima nem sequer arde sem se ver. Fala-se de desgostos e sóis postos em vez dos reis que devem ser depostos. Diz “escrito nas notas do telemóvel” em vez de ter sido malhado nas máquinas de escrever e bombado nos teclados do computador como se fossem arrasadoras metralhadoras desesperadas por reaver as nossas palavras agora ocupadas indevidamente. E o trovejante tumulto interior que infecta de forma abjecta os nossos irmãos e as nossas irmãs e aqueles que estão além e aquém de géneros e papéis, não perceberam ainda que há uma guerra sagrada a ser travada.
Dizem-me que este não é o momento. Que a poesia para nada. Não quando a mera fundação da existência está a ser devastada.
– É um exercício de futilidade – dizem – nesta era da verdade e da informação. Esquecem-se que foram as odes e as elegias que elevaram santos & sábios ao estatuto de santos & sábios. Foram as odes e as elegias e as poesias de verso livre e os poemas longos e os poemas épicos que deificaram o mundo e cavaram tão profundo nas cavernas das aortas e dos ventrículos dos nossos corações colectivos. Essas poesias que sabem que a mente mente e que demonstram inequivocamente que delas brotam as imparáveis torrentes de nascentes misteriosas e desconhecidas e inexplicáveis. Das sementes dormentes e desprezadas das espécies consideradas invasoras surgem desorganizados e elevados exércitos que por tão desvalorizados se apoderam de absolutamente tudo.
A poesia com que celebramos os que admiramos e todas as criaturas, todas as formas impuras da existência – sedutoras ou ensurdecedoras – conseguimos dobrar o tempo com a gravidade da mesma força de Newton, provocamos o colapso de estrelas tão distantes que não são ainda visíveis a olho nu e geramos um campo gravitacional tão monumental como um buraco negro porque só na verdadeira escuridão poderemos algum dia aspirar a conhecer a luz.
Transcendemos a matéria e a miséria porque a poesia se cria na crise e no confronto com o monstro como quando o Subcomandante Marcos diz “Sim, Marcos é gay. Marcos é gay em São Francisco, negro na África do Sul, asiático na Europa, chicano em San Ysidro, anarquista em Espanha, palestino em Israel, índio maia nas ruas de San Cristobal, judeu na Alemanha, cigano na Polónia, um moicano no Quebeque, um pacifista na Bósnia, uma mulher solteira no metro às 22 horas, um camponês sem terra, um membro de um gangue nos bairros de lata, um trabalhador desempregado, um estudante infeliz e, claro, um zapatista nas montanhas”; quando Zapata rejeita o poder depois do o conquistar; quando Emma Goldman não aceita revolução sem dançar; quando Debord diz que nunca conheceu um dia de trabalho honesto na vida a não ser que se conte com os jogos ilegais de póquer que ganhou; quando Angela Davis diz “É preciso agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E tens que fazer isso em todos os momentos.”; quando Natália diz aos subalimentados do sonho que a poesia é para comer. Para comer, para beber, para fazer amor com o universo porque não posso escrever aqui a palavra que tenho vontade e que não é fornicar nem copular nem procriar. A poesia está em tudo e todos, para além da palavra e da própria poesia e existe para cantar quem nunca escreveu uma linha mas sempre estive na linha da frente e que do seu silencio se fez fluência. Existe tanta poesia para além da poesia. Mas onde ela se traveste é no marketing agreste, no bruto apego ao estatuto, na reverência e conivência para atingir um fim que não seja o fim de tudo o que se diz poesia, mas é apenas anestesia para manter os mestres, os escravos e os aprendizes.
Subserviência com o poder vigente é usar a poesia como se fosse da aristocracia quando ela pertence tão claramente à resistência.
Hasta la poesía siempre.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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