Depois de O Algarve em Fios de Histórias publicado em dezembro de 2022, com edição praticamente esgotada, o jornalista Ramiro Santos regressa aos livros com a história dos 50 Anos de Abril no Algarve. Um trabalho escrito num fôlego para coincidir com a data da celebração da Revolução dos Cravos. A grande maioria das histórias que compõem as suas 272 páginas, são crónicas datadas e reescritas a partir de originais editados nos diversos órgãos de comunicação social em que trabalhou. No livro corre o Algarve, onde quase tudo estava por acontecer: 50 anos de realizações e sonhos, ilusões e desenganos, alegrias e esperanças frustradas. Na escrita dos dias, respirando a conquista maior do sonho em liberdade.
P – 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, pode dizer-se que se cumpriu Abril?
R – Nada está definitivamente cumprido. Porém, importa fixarmos o olhar no que era o país e o Algarve em 1974. Uma região esquecida onde grassava o analfabetismo, a morte infantil prematura e elevadas taxas de suicídio. Onde quase tudo estava por acontecer: estradas, telefones, saneamento básico, abastecimento de água. Vindos de Lisboa, demorava-se umas longas horas em perigos e solavancos, e ir de Faro a Alcoutim ou a Lagos, merecia um aceno de despedida com lenços brancos. As expetativas de mudança eram muitos altas e, por isso, o que não foi alcançado ou ficou aquém do esperado constitui uma desilusão para quem sonhava um mundo mais justo e melhor.
“O Algarve assistiu a uma autêntica revolução em obras públicas como provavelmente não tinha conhecido na sua história. Um volume de investimentos, nas mais diversas áreas, muito significativos que lhe mudaram a face e molduram o futuro”
P – Mas no livro fala numa revolução como o Algarve nunca tinha conhecido!…
R – Sim, com um pouco de exagero, o Algarve assistiu a uma autêntica revolução em obras públicas como provavelmente não tinha conhecido na sua história. Um volume de investimentos, nas mais diversas áreas, muito significativos que lhe mudaram a face e molduram o futuro. Para além das obras em sectores já referidos anteriormente, cabe lembrar investimentos no domínio do planeamento, ordenamento do território e ambiente. E se é verdade que já não se morre de salmonelas, é preciso lembrar que foi preciso que um primeiro-ministro aqui viesse declarar bombasticamente que o Algarve estava à beira da pré-catástrofe para se ganhar definitivamente a urgência em cuidar de uma região com potencial de crescimento económico fundamental para o futuro do país e da região.
E cabe lembrar que não havia autoestrada nem Via do Infante, nem tão pouco universidade ou conservatório e as escolas secundárias funcionavam apenas em algumas sedes concelhias. É importante fazer este retrato dando a conhecer aos mais jovens o que era o país e o Algarve há 50 anos, realçando o que foi concretizado, mas sem perder de vista o que há ainda por fazer. Porque é bom reconhecer que decorridos estes anos fica o sabor agridoce de que seria possível ter indo mais longe.
“Importa fixarmos o olhar no que era o país e o Algarve em 1974. Uma região esquecida onde grassava o analfabetismo, a morte infantil prematura e elevadas taxas de suicídio. Onde quase tudo estava por acontecer: estradas, telefones, saneamento básico, abastecimento de água”
P – O livro não se fixa apenas nos primeiros anos da revolução…
R – São 12 capítulos onde procurei destacar – certamente não totalmente conseguido – os acontecimentos mais importantes ocorridos nestes anos no Algarve, fazendo sempre o enquadramento político nacional em cada período cronológico. Além dos anos de brasa da revolução, do assalto ao Governo Civil de Faro, e casos que muita gente ainda tem na memória como os duelos políticos no verão algarvio, a ascensão política de Cavaco Silva, o gangue de Raposinho, o atentado de Montechoro, a morte de Joaquim Agostinho e o caso Maddie, por exemplo.
P – É, portanto, uma viagem de notícias até aos dias de hoje?
R – De certa forma, porque fica sempre muita coisa por contar. Não há obras completas e perfeitas, e esta também não tem a pretensão de o ser. Foi escrita com base na minha memória e recurso aos meus arquivos que conservei em crónicas datadas e reescritas a partir de originais escritos nos diversos órgãos de comunicação em que trabalhei. Com imprecisões, erros, gralhas, próprios de quem escreveu contra o tempo para que o livro estivesse pronto para publicação nos 50 anos de Abril. Haverá quem no futuro possa debruçar-se com outro tempo e estudo a fazer um trabalho mais completo. Este livro é o meu pequeno contributo e retribuição ao Algarve pelo acolhimento que aqui recebi, onde fiz o meu percurso profissional, e onde nasceram os meus filhos.
“Não posso deixar de lamentar a morte de jornais e títulos (…) pela falta de apoio de quem tinha e tem a obrigação de apoiar: falo dos governos, das autarquias, das instituições públicas e dos empresários”
P – Sendo um livro de memórias recentes da política, de acontecimentos que foram notícia, de casos curiosos e fait divers, cabem também testemunhos de figuras que marcaram estes anos, algumas já falecidas…
R – Sim, como Margarida Tengarrinha que entrevistei para o Postal um ano antes da sua morte, o poeta António Ramos Rosa, o docente e historiador Rosa Mendes, Cabrita Neto e Joaquim Vairinhos, para referir algumas figuras que nos deixaram. Felizmente ainda entre nós está Carlos Brito que dá o seu testemunho de uma vida de luta pela democracia e pela liberdade, e Teresa Rita Lopes, uma das maiores especialistas na vida e obra de Fernando Pessoa que revela casos interessantes do poeta e da sua ligação ao Algarve. Outra figura que não podia ficar esquecida é Lídia Jorge, uma das mais consagradas escritoras da literatura portuguesa contemporânea, nacional e internacionalmente reconhecida e premiada pela vasta obra, a última das quais – Misericórdia – foi contemplada com o prémio Médicis entre outros.
A propósito, meio século depois da revolução, vale a pena revisitar O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, tomando o caminho da pequena aldeia do barrocal algarvio e das suas gentes que viram chegar os soldados de Abril num misto de incredulidade e de espanto. Incapazes de entenderem o que se passava à frente dos seus olhos, José Maria, o cantoneiro disse: “Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se”.
P – E agora, para quando novo livro ou outros projetos?
R – Por agora, nada de novo. E quanto a projetos, depois de uma vida intensa no jornalismo, acho que chega de escrita. Há muita gente nova a fazer coisas muito interessantes e importantes na investigação histórica, na literatura, na poesia e no jornalismo. E a propósito de jornalismo, não posso deixar de lamentar a morte ou enfraquecimento de títulos que ocuparam durante décadas papel relevante na afirmação do Algarve. Sendo fruto dos sinais dos tempos também é revelador da falta de apoio de quem tinha e tem a obrigação de apoiar: falo dos governos, das autarquias, das instituições públicas e dos empresários. Uma democracia sem imprensa e comunicação social fortes, será sempre uma democracia fraca e exposta ao delírio dos populistas e demagogos.
BIOGRAFIA
Ramiro Santos nasceu numa pequena aldeia do Alentejo, trouxe de África a luz do Índico onde passou a infância e a adolescência, e no Algarve respira os dias azuis e a claridade. Jornalista profissional durante uma vida, a rádio foi a sua casa primordial com destaque para a TSF, Antena Um, Rádio Comercial e Emissor Regional do Sul. Com passagem pelos jornais, trabalhou em acumulação com a rádio, nas agências Lusa e NP. Percorreu em reportagem o país profundo e, como enviado especial, esteve em palcos tão diversificados como o Kosovo, Bósnia, Timor, Moçambique e Zimbabué.
No Algarve foi encontrar o tema para o seu primeiro livro, O Algarve em Fios de Histórias, com a chancela da editora Guerra e Paz.
Em contexto nacional, volta agora à temática regional revisitando os últimos 50 anos de Abril como testemunha privilegiada de quem viveu na primeira pessoa as transformações e acontecimentos que mudaram a face e moldaram o futuro de uma região periférica muitas vezes esquecidas.
Retirado do jornalismo ativo, voltou à escrita, na imprensa de proximidade, mantendo uma colaboração no Postal do Algarve, num exercício de inquieta cidadania.
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