O luxo é provavelmente o segmento de consumo mais esquizofrénico. Ainda os resultados das vendas dos dois maiores grupos de luxo, no primeiro semestre do ano, não tinham sido apresentados e já um relatório do Luxury Institute anunciava uma recessão no setor.
É sabido que na sequência de crises (ou mesmo durante elas), o consumo de luxo aumenta. Os dois anos em pandemia e em sucessivos confinamentos assim o confirmam, com os principais grupos do sector a recuperar as vendas em 2021 para níveis acima de 2019. Isto sem falar na corrida às lojas a cada desconfinamento e a rotura de stocks em algumas marcas.
O que é bizarro neste primeiro semestre de 2022 é que ao mesmo tempo que os dois maiores grupos de luxo anunciam crescimentos acima de 20%, diretores executivos e presidentes de empresas de produtos e serviços de luxo consideram que se avizinha uma desaceleração da indústria (59%) ou que estás prestes a chegar uma crise ao mercado de luxo (41%), segundo o relatório, divulgado em junho, do Luxury Institute, empresa de pesquisa nesta área.
Das duas uma: ou os executivos ouvidos neste estudo não pertencem às maiores marcas de luxo ou esta é mais uma esquizofrenia do setor. É que mesmo com as consequências da guerra na Ucrânia, do regresso às restrições anti-covid na China (o maior motor do luxo) e do caos instalado nas viagens aéreas, as vendas de luxo crescem nos seis primeiros meses do ano.
Os resultados financeiros dos dois maiores do setor, apresentados esta semana, são inequívocos. O grupo LVMH tem receitas de €36,7 mil milhões, a crescer 28% face ao primeiro semestre de 2021. Um aumento praticamente igual ao do segundo trimestre de 2022 (27%), período preocupante para as marcas de luxo, devido ao regresso ao confinamento na China, que implica não só lojas fechadas como a ausência de turistas chineses em geografias onde são determinantes em termos de consumo de luxo, como Lisboa.
Em termos de segmentos, aquele que representa dois terços do negócio do LVMH, a moda e os artigos em pele, é o que mais cresce (31%). A principal responsável por este desempenho é a procura das coleções de marcas-estrela como a Louis Vuitton e a Christian Dior, cujas vendas se mantiveram ao longo da pandemia. O grupo LVMH salienta o aumento de quota de mercado não só na Vuitton e na Dior, como em outras marcas de referência que detém (Fendi, Celine, Loro Piana e Loewe), e recordes de crescimentos dos lucros.
O segundo melhor desempenho em termos de segmento regista-se no Retalho Seletivo (30%), onde se encontram a cadeia de perfumarias Sephora e as lojas nos aeroportos DFS (Duty Free Store). A corrida aos produtos de beleza na sequência da pandemia e a normalização do tráfego aéreo justificam o aumento. Isto tendo em conta ainda que a base de comparação do crescimento nas lojas duty-free nos aeroportos é praticamente nula, uma vez que no primeiro semestre de 2021 as viagens estavam muito reduzidas.
Estão igualmente a crescer as restantes áreas do grupo LVMH, como os vinhos e as bebidas espirituosas (23%), os relógios e as joias (22%) e os perfumes e a cosmética (20%). Nas bebidas destaca-se o conhaque Hennessy, que contrabalança o impacto negativo das restrições anti-covid na China e os problemas logísticos, com o crescimento no segundo trimestre de 2022 nos Estados Unidos e o aumento de preços.
Aliás, o aumento de preços, que tem sido constante desde o início da pandemia em 2020, é transversal a todas as categorias das principais marcas de luxo e em alguns produtos mais icónicos e procurados. Mas nem isto tem afastado compradores, havendo listas de espera em algumas marcas de relógios, por exemplo, como a Rolex, Patek Philippe, Audemars Piguet e, mais recentemente, a Zenith, que integra o grupo LVMH.
Um dia depois do anúncio do LVMH, a 27 de julho, a segunda maior empresa do setor demonstra que está tudo bem, ou até mesmo muito bem. As receitas da Kering aumentam 23% nos primeiros seis meses do ano face a 2021, para um total de €9,93 mil milhões, com todas as marcas a contribuírem para os resultados. A Gucci, a ‘estrela da companhia’ e que representa mais de metade da faturação total da Kering, porém, é a que tem o crescimento inferior (15%) para €5,173 mil milhões.
Com um volume de vendas bastante mais baixo, €1,481 mil milhões, a Yves Saint Laurent é a que está mais em expansão aumentando 42% no primeiro semestre. O segundo maior crescimento (32%) pertence ao segmento Outras Casas, por conta principalmente do sucesso da Balenciaga, mas onde se encontra também a Alexander McQueen e a Brioni, por exemplo, destacadas com crescimentos fortes e em trajetória de recuperação.
Dentro da Kering, curiosamente, a marca que mais cresce tem uma disputa taco-a-taco com a marca que mais vende, mas num território emocional. A Gucci acaba de destronar a Balenciaga na liderança da lista das marcas ‘mais quentes’ do mundo, depois da Balenciaga ocupar essa posição nos últimos nove meses. O Lyst Index, um indicador trimestral das marcas e produtos de moda considerados mais quentes pelos consumidores, atribui à Gucci o primeiro lugar da tabela no segundo trimestre de 2022. A justificação? O aumento de 286% na procura da Gucci nas 48 horas a seguir ao lançamento da coleção em parceria com a Adidas e o impacto da linha em colaboração com o cantor e ator Harry Stiles.
Esta alteração de posições indica aquilo que se sabe há muito: a associação de marcas de luxo a outras marcas e a celebridades, de preferência idolatradas pelas novas gerações, garantem um lugar no coração e no orçamento financeiro dos consumidores. Mais: estas iniciativas têm sido um dos grandes impulsionadores das vendas de luxo. Mas as colaborações são uma árvore, que não faz a floresta. É esta visão abrangente que leva os diretores executivos ouvidos no estudo do Luxury Institute a traçar um futuro de médio prazo preocupante.
As ameaças são sobejamente conhecidas, mais preocupantes para as marcas menos fortes e que não estão integradas em grandes grupos. À guerra na Ucrânia e às restrições covídicas na China somam-se os consequentes aumentos de preços e de taxas de juro, o agudizar das questões com as matérias-primas, cadeias de abastecimento e de logística, mais o disparar da inflação e dos custos energéticos, e a falta de mão-de-obra. Não há muito por onde fugir destas circunstâncias.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL