Poucas vezes uma singela hora terá sido tão bem aproveitada, num palco de festival, como aquela que foi atribuída aos Ornatos Violeta, neste último dia de MEO Kalorama. E, nesta sua segunda vida, a banda do Porto só teve de recorrer ao seu segundo álbum, “O Monstro Precisa de Amigos”, de 1999, para compôr um alinhamento à prova de bala. Replicar o impacto emocional dos primeiros concertos desta segunda vida, em 2012, será praticamente impossível; em 2019, a “reprise” também lhes correu bem, dando-nos motivos para sorrir mesmo antes da chegada da pandemia. Em 2022, e ainda que continuem sem partilhar canções novas, os Ornatos Violeta mostram uma segurança e solidez que impressionam quem, como nós, os acompanhou na sua primeira encarnação. A espaços, parece-nos até que o prazer – em estarem juntos, em partilharem estas canções com sucessivas gerações – é redobrado, nesta idade adulta. Como se a música que fizeram nos anos 90 fosse uma camisola velha, que agora lhes assenta melhor do que nunca, realçando formas e oferecendo conforto. A entrega dos cinco ornatos é percetível e encontra correspondência na plateia, que não lhes larga a mão ao longo desta hora que valeu por várias. E assim, como não quer a coisa, aconteceu um dos melhores concertos da segunda vida de Manel Cruz, Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinörm.
Se, ontem à noite, os Arctic Monkeys ousaram começar o concerto com um dos seus maiores êxitos, hoje os Ornatos Violeta escolheram, como abertura, um dos momentos mais densos de “O Monstro…”, a meditativa ‘Coisas’. Num e noutro caso, a mesma coragem e a mesma riqueza de repertório, sendo que a obra dos portugueses é bem mais frugal, compondo-se apenas de dois álbuns (“Cão!”, de 1997, não ladrou hoje). Seguiu-se ‘Deixa Morrer’, com as teclas de Elísio Donas a emprestarem algum classicismo ao lusco-fusco e o sorriso de Manel Cruz a não deixar margem para dúvidas: é mesmo um prazer estar aqui, para eles e para quem acompanha quase todas as letras.
Provavelmente por lidarem, com arte e honestidade, com temas mais antigos que o mundo (em resumo: o amor e o seu contrário), as canções dos Ornatos Violeta sobrevivem à passagem das décadas. Curioso é ver que a própria banda parece, hoje, acreditar mais na sua música do que nalguns períodos da sua primeira existência. E por falar em confiança: depois da prece ‘Para Nunca Mais Mentir’ e do rock quase industrial de ‘Tanque’, uma sequência mais enérgica lançou a loucura na plateia – e no palco.
A febre começou com ‘Dia Mau’, que teve de ser retomada, depois de Manel Cruz saltar um verso (no seu português correto: “f*di tudo”). Logo de seguida, e carregando no dramatismo e na veia teatral, ‘Pára de Olhar para Mim’ e ‘O.M.E.M.’ mantiveram a adrenalina nos píncaros, e eis senão quando este letrista e vocalista extraordinaire surpreende quem não tira os olhos dele, deixando-se cair de costas nos braços dos fãs. O crowdsurfing inesperado aumenta ainda mais o entusiasmo popular com um animal do rock que, está bom de ver, não pode nem deve estar preso.
A bela e sombria ‘Nuvem’, que termina com um romance entre guitarras, antecipou a canção mais aguardada por muitos: em tempos vista de lado pela própria banda, ‘Ouvi Dizer’ é agora um momento de comunhão total, levando até Manel Cruz a descer ao público e confraternizar com os fãs.
Nesta hora tão bem aproveitada, houve ainda tempo para ouvir, e cantar, outros lados da mesma dor glosada em ‘Ouvi Dizer’, cuja raiva dá lugar, em ‘Notícias do Fundo’, a uma postura mais resignada. Depois da dulcíssima ‘Capitão Romance’, provavelmente a única diáspora sem um lado mau, ‘rebentou’ então na Bela Vista a vertente mais explosiva de uma ruptura amorosa indesejada: montada num imortal riff de Peixe, ‘Chaga’ origina um dos maiores coros deste final de tarde e conta tudo o que há para saber sobre a mágoa que fica após o fim, em sucintos três minutos e três segundos.
Felizes por ainda poderem tocar duas canções, e não apenas uma, os Ornatos Violeta encaixam então no alinhamento aquele que é, possivelmente, a sua melhor raridade, ‘Há-de Encarnar’, e a veloz ‘Pára-me Agora’, na qual vários membros da sua equipa entram em palco para celebrar com a banda. Há caras de que nos lembramos dos anos 90, tanto ali, assegurando que o concerto corre bem, como cá em baixo, cantando estas letras que continuam a fazer faísca em português. Ao som de pedidos de “só mais uma!”, pedido impossível de cumprir neste contexto festivaleiro, os Ornatos Violeta saem então de palco fazendo vénias, distribuindo baquetas e oferecendo sorrisos. Foi, mais uma vez, um prazer.
Ornatos Violeta no MEO Kalorama, Lisboa, 3 de setembro de 2022
Coisas
Deixa Morrer
Para Nunca Mais Mentir
Tanque
Dia Mau
Pára de Olhar para Mim
O.M.E.M.
Nuvem
Ouvi Dizer
Notícias do Fundo
Capitão Romance
Chaga
Há-de Encarnar
Pára-me Agora
- Texto: Blitz do Expresso, jornal parceiro do POSTAL