O historiador Laurentino Gomes considerou que o empréstimo do coração de D. Pedro, que foi rei no Brasil e em Portugal, solicitado pelo Governo brasileiro para celebrar os 200 anos da Independência do país sul-americano é um eco da ditadura militar.
“O coração do D. Pedro é preservado em condições muito delicadas, lá na igreja da Lapa, no Porto, e há um risco real. [O pedido de empréstimo] é um eco autoritário de uma ditadura, porque [na comemoração do aniversário dos 150 anos] era o auge da ditadura, em 1972, os militares trouxeram os restos mortais de D. Pedro para o Museu do Ipiranga”, frisou Gomes.
“Bolsonaro, que cultiva a ditadura brasileira, é um adepto da ditadura, é um homem autoritário, um misógino, preconceituoso, racista, tentou mimetizar os generais [da ditadura militar]. Eles trouxeram o corpo, então, num gesto simbólico, vamos trazer o coração”, acrescentou.
O executivo da Câmara do Porto vota na segunda-feira autorizar a transladação temporária do coração de D. Pedro para o Brasil no âmbito das comemorações do bicentenário da independência daquele país.
Na proposta, a que a Lusa teve acesso, o presidente da câmara, Rui Moreira, assinala que o município pretende autorizar a transladação temporária do órgão através da celebração de um contrato de comodato a celebrar com o Governo brasileiro.
“Tratando-se de um bem cultural, enquanto bem móvel que representa testemunho material com valor de civilização ou cultura, está sujeito a um especial regime de proteção e valorização”, salientou Moreira.
Para o historiador brasileiro, porém, esta trasladação “vai ser útil para a propaganda ‘bolsonarista’ e isto é uma pena porque é um desrespeito à memória do próprio D. Pedro”.
“Eu sinto o seguinte, esse bicentenário ainda não pegou no Brasil exatamente por culpa do Bolsonaro, porque ele está se apropriado de uma comemoração com uma linguagem que roça o fascismo de [Benito] Mussolini”, acrescentou.
Laurentino Gomes, que no ano passado disse à Lusa que Portugal deveria pedir perdão ao Brasil pela escravização dos africanos e acabou ameaçado de morte por portugueses nas redes sociais após desta declaração, lançou recentemente o terceiro volume da trilogia Escravidão, no qual relata como foi a escravização de africanos e afrodescendentes no período da Independência do Brasil (1822) até à Lei Áurea de 13 de maio de 1888, quando os cativos foram finalmente libertados na sua totalidade.
“Neste último volume, o que mais me impressionou durante a pesquisa escrita é como o Brasil resistiu obstinadamente a acabar com o tráfico de africanos escravizados, só fez isso em 1850, foi o último país da América a tomar essa providência. E, depois, acabar com a própria escravidão com a lei Áurea”, frisou.
“Todos os ciclos económicos, toda a riqueza brasileira, desde a chegada dos portugueses à Baía em 1500, até ao final do século XIX, foram construídos com mão-de-obra escravizada”, acrescentou.
O historiador explicou que este trabalho lhe permitiu perceber que o Brasil acabou com a escravidão, mas não a herança da escravidão já que os governantes que se seguiram no país independente não deram terras, trabalho, renda, moradia, educação ou oportunidades para ex-escravizados negros e seus descendentes, que até hoje compõem a grande parte da população pobre do país.
“A escravidão criou no Brasil uma sociedade de castas que permanece até hoje, uma sociedade desigual, injusta, em que as pessoas se tratam de forma diferente devido a uma ideologia escravista, que se convertem numa ideologia racista”, frisou.
“Todos os dias, todo o final de semana em nossos estádios [de futebol], uma pessoa entra no ‘shopping center’ é discriminada, é tratada de forma diferente em razão da cor da pele. O Brasil é um país segregado na paisagem, nos indicadores sociais, no comportamento. Existem relações escravistas hoje no Brasil”, concluiu.