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Consultora Filosófica
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Questiona João dos Santos (1913-1987), psiquiatra e psicanalista, criador da moderna saúde mental infantil em Portugal. Se em vez de despedirmos imediatamente o desconcerto em que esta pergunta nos deixa, permitimos que ela actue em nós, talvez possamos reflectir sobre a sua própria natureza. Afinal, o que é perguntar? O que é uma pergunta? O que é que é necessário para que uma pergunta aconteça? Existem boas e más perguntas?
Um ponto de vista ignorante vive-se a si próprio como um ponto de vista absoluto. Quem julga que sabe tudo, desconhece que não sabe. Por isso mesmo a frase socrática “só sei que nada sei” mostra uma ignorância sábia. É uma ignorância que se auto-reconhece. Já Platão afirmava que “se o conhecimento respeita ao Ser, e o desconhecimento forçosamente ao Não-Ser, relativamente a essa posição intermédia, deve procurar-se algo entre a ignorância e a ciência.” (Platão, República 477b) A pergunta seria então, para o fundador da Academia, um estádio intermédio entre a sabedoria e a ignorância; um contacto detido com isso que ainda não se tem, mas, apesar de tudo, contacto.
Porém, existem diferentes tipos de não saber. Se me esqueço, por exemplo, do número de telefone de alguém, ou do nome de certo actor, não consigo enunciar qualquer dos dois, mas também não permito que um número ou um nome errado lhes corresponda. Se alguém ao meu lado começar a sugerir números ou nomes, eu vou dizendo “não”, “não”, “não”, até que a resposta certa surja de repente, e ilumine sem réstia de dúvida essa zona da memória até há pouco apagada. O número ou o nome esquecido ocupava um certo espaço que só consegue ser preenchido pela recordação exacta que lhe corresponde.
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Algo de diferente acontece com uma pergunta. A tensão da pergunta contém em si própria uma direcção e essa direcção é responsável pelo que se poderá vir a encontrar. Uma boa pergunta aponta para a sua resposta, é uma espécie de ponto de vista grávido. Com tempo e perseverança a resposta acaba por nascer. Da mesma forma, há perguntas que são como se “se tentasse ordenhar um bode e apanhar o leite com uma peneira!” Eis a descrição de uma pergunta estúpida!
Pergunta vs. Interrogação
Vergílio Ferreira (1916-1996) escritor e ensaísta português, afirma: “Uma pergunta não interroga: uma pergunta diz a resposta.” Talvez por isso tenha sido certeiro João dos Santos, com a pergunta que dá título a este artigo. No entanto, para Virgílio Ferreira esse estado inquisitivo, o estado das boas perguntas, aquelas que apontam para uma resposta certa, é um estado degradado: “A pergunta é assim o eco da interrogação degenerada, a que já de si se esqueceu no jogo do faz-de-conta. Faz de conta que tudo tem razão de ser, que tudo é porque é, que a necessidade evidente habita o coração das pedras e dos homens.” (Invocação ao meu corpo).
Na mesma linha a filósofa María Zambrano afirma que a forma sistemática, típica dos tratados filosóficos, se consubstancializa num método inquisitivo. Uma pergunta surge de uma inquietação intelectual e todos os esforços reflexivos subsequentes se realizam no sentido de encontrar uma resposta. O problema reside em que, assim predispostos para encontrar a resposta, renegamos a natureza das coisas que é intrinsecamente misteriosa. Em coro com M. Zambrano, V. Ferreira afirma: “Deus existe como a corporizarão ou a resposta, não apenas da procura do homem, mas ainda do estilo ou qualidade dessa procura. Criado à imagem e semelhança do homem, ele fixa o resultado do mistério que se saldou em problema, da interrogação que se degradou em pergunta.” E assim é porque “uma pergunta está do lado do problema a resolver, do ainda simplesmente desconhecido; e a interrogação está do lado do insondável”. Em consonância, a filósofa reclama para o seu método filosófico a suspensão da pergunta que se traduz numa atitude de passividade activa. Chama a si o modus faciende pitagórico que consiste mais em disponibilizar-se para acolher a resposta do que em perguntar como um cientista.
A força da ciência assenta nesse pressuposto sistema de razões, cujo alinhamento cabe descobrir e tudo ficará então não só clarificado mas passível de ser controlado. No entanto, quando a malha de razões se julgava suficientemente apertada para que nada escapasse, eis que o conhecimento último se esgueira, o mistério prevalece e o insondável brilha em todo o seu esplendor!
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(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)