
[email protected]
canalsonora.blogs.sapo.pt
Gabriela Rocha Martins, com formação na área de Direito e em Técnicas Documentais, nasceu em Faro e tem quatro livros editados. Foi fundadora e coordenadora do projecto literário, a nível nacional, “Bienais de Poesia de Silves” (de 2005 a 2015). Podemos lê-la em várias Antologias e Revistas, em Portugal e no estrangeiro. Participou em quatro projectos poéticos ibéricos e faz parte dos Poetas del Mundo.
E no quotidiano poético….
“Ser poeta é…….” Não ,não sou .nem o princípio nem o fim .não estou nem no aqui ,nem no agora .estou e digo .falo .escrevo .brinco com as palavras e com os leitores com quem estabeleço jogos de fuga ou persuasão .como o faço ,diariamente ,comigo e com os outros .não gosto de compromissos .gosto do Ser-em como premissa de uma vagamunda da palavra .é com ela e só com elas que me assumo .liberta .tudo o mais é voragem , até porque o meu livro de horas há muito que se fechou
Acerca de dias em que acontece poesia …
um dia ,há muito tempo ,alguém me ofereceu uma caneta e mostrou as estrelas .de imediato ,teci pontos de confluência ,silêncios ,afugentei medos ,chorei de raiva ,misturei-lhes gargalhadas e um pouco de melancolia .comecei a ter ,por companheiros de jornada ,um Vergílio Ferreira ,um Alexandre O’Neil ,um Manuel Gusmão ,uma Margueritte Yourcenar ,uma Simone de Beauvoir ,um James Joyce ,um Jean Paul Sartre ,um Rimbaud ,um Jacques Derrida ,um Haruki Murakami ,uma Sylvia Plath ou uma Maria Gabriela Llansol ,entre muitos outros ,e ,no meu acordar devagar ,fui colhendo pétalas .hoje ,tenho-os no meu dia a dia .acordo e adormeço com eles ,roubo-lhes ( sem plágios ) as palavras e as ideias e vou construindo novos trilhos ,novas cadências ,outros escritos ,sem regras e sem normas .não tenho horas para escrever .nem dias .nem semanas .o Levante é o meu senhor .todavia ,tenho a Norma Linguística como ponto de partida e de chegada .diários

O material e ao imaterial nos processos de escrita…
sou ,por natureza e vocação ,uma amante do belo .o visual tem imensa importância no meu delírio escrevente .por isso ,não pontuo ,ou quando o faço ,por uma questão estética ,arrumo a vírgula e o ponto final à palavra que ,cúmplice ,se avizinha .não uso maiúsculas ,porque o computador é a minha tela e sou “uma senhora muito bem educada .não berro ,escrevo” ( exige-se uma gargalhada no fim desta frase ) .desconstruo e construo palavras ,naquele jogo que estabeleço com a Língua e o leitor .pergunto-vos? como se abraça? com os braços ,não? então o hífen ,também meu companheiro ,ajudar-me-á a juntar os braços ,afim de a-braçar ,porque o a-braçar traduz uma acção contínua .contrário ao hífen que junta ,o ponto final separa .se eu permitir ao leitor duas leituras ,porque ficar-me ,apenas ,numa? assim ,pego ,por exemplo ,no verbo referir e separando o prefixo re ,dou de bandeja ,a quem me lê ,a possibilidade de jogar com os verbos ferir e referir .e é este construir ,desconstruindo palavras que vou pintando na tela/ecrán do meu computador ,único meio de poetar .por fim
posso ,eventualmente ,no meu correr pelo dia ,parar numa frase que alinhavo num qualquer papel .posso acordar ,a meio da noite ,com um poema rascunhado .tento passá-lo ,para uma folha .esqueço-o ,durante horas e dias ,nas algibeiras ,sobre as mesas ,secretárias ,ou bancos do carro .há uma notícia que me chama a atenção .um homem que morre gazeado .algures,uma mulher violada .na maré-baixa ,uma criança morta .um olhar perdido de um miúdo .homens e mulheres que fogem de nenhures .então ,há um grito que me obriga a consciencializar o Outro .aquele Ser-em que ,colado à minha pele ,me acompanha .e ,um dia ,numa hora ,pego-lhes e ,perante a tela branca do computador ,pinto e trabalho as palavras ,com amor ,com raiva ,com desdém ,com mágoa ,nunca com indiferença .uma ,duas ,três ,as vezes que achar necessárias .demoro a escrever
Como aconteceu o projecto do último livro….
“A crispação de um toque a-fora o Ser” não é ,senão ,a minha homenagem a alguém por quem tenho uma enorme admiração e cujos livros descansam ,numa pequena secretária ,ao lado do meu computador – Maria Gabriela Llansol .às vezes tenho necessidade de pegar num ,enquanto os outros repousam e me olham de esguelha .preciso dela ( como preciso duma Maria Teresa Horta , duma Sylvia Plath ou uma Nélida Piñon ) para ser Eu na escrita .mas a Maria Gabriela Llansol ,como eu ,não é uma mulher fácil .muito menos a sua escrita .quando ,há anos ,peguei no seu livro “Lisboaleipzig I. O encontro inesperado do diverso” senti uma enorme resistência à leitura .não a percebia e a minha angústia em não entender alguém que admirava sem saber porquê ,levou-me a tentar lê-la ,mais e mais e ,a par da leitura ,a estudá-la .a procurar ,nos outros ,caso ,por exemplo ,de Carlos Santos ,de João Barrento e Maria Etelvina Santos – igualmente responsáveis pelo “Espaço Llansol” – de Eduardo Lourenço e ,sobretudo ,da Maria João Cantinho ,que me conduziram ,pelas imagem ,lugares e tempo do universo llansoliano .a partir de então ,Gabriela Llansol passou a ser minha convidada diária … e ,de quando em vez ,havia recados que me pousava no regaço ,que me sussurrava ,enquanto ,eu ,mui lentamente ,ia sentindo a necessidade de interiorizá-los .de assumi-los como meus .e ,daquela crispação primeira fruto de um toque ,adveio a admiração pelo/a-fora esse Ser em excelência ,de seu nome Maria Gabriela Llansol .assim nasceu o livro “da crispação do toque a-fora o Ser”( assim se justifica o título )
um poema escrito sobre a água
*
há dias em que durmo sobre uma enxerga como
se um rol de andarilhos tivesse deixado num
vão de escada os andrajos do vagamundo
*
os vizinhos do prédio onde Amadeus Mozart
escreveu “Idomeneo”
conhecem-me os passos o
vestuário sujo as
mãos cobertas por luvas esbulhadas
*
sirvo aos transeuntes um naco de pão onde o bolor
se alapa para em troca receber uma nuvem
carregada de chuva
*
não sei que mão devo estender ( porque )
reservo pendurado à esquerda um
saco rasgado por onde o argaço escorre
deixando para trás um oceano aberto
à genialidade
*
levanto a gola do sobretudo onde se acolhem
as pernas e visto-me de
sombras para
mergulhar faminta no repasto do chiste
*
a vida não é uma instalação de arte
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)