É o mais importante rosto da literatura portuguesa actual nascido por terras algarvias e lançou recentemente Os Memoráveis, razão mais do que suficiente para uma entrevista com uma das mais proeminentes filhas de Boliqueime.
A carreira literária iniciada com O Dia dos Prodígios, no ido ano de 1980, soma já 18 títulos entre romances, onde sempre se destacou, ensaios, peças, livros infantis e contos.
Incontornável no panorama literário português, eis a grande senhora da escrita numa conversa mantida com Paulo Serra, colaborador do Cultura.Sul, que percorre a obra da autora a partir de um foco centrado no seu último romance.
Sente-se nesta última obra, de facto, um quase retorno ao “extra-ordinário” dos seus primeiros dois romances e um leitor pode mesmo sentir, ao chegar ao final, que não compreendeu tudo no âmago, pois o processo de leitura deste romance afigura-se ao «descascar de uma cebola». Talvez seja preciso uma releitura ou ouvir as suas próprias palavras para chegarmos «ao coração do coração da fábula».
Cultura.Sul (CS) – Qual foi a imagem ou situação que inspirou este romance?
Lídia Jorge (LJ) – Foram várias as imagens que me conduziram até à escrita deste livro. A mais antiga tem 14 anos. Remonta ao ano 2000. Nesse ano, o Suplemento literário de O Público, que então se chamava Leituras, propunha a quatro jovens escritores portugueses, com menos de 35 anos, que escrevessem textos tendo por mote a revolução. Cada um a seu jeito, todos evitaram o assunto. A revolução de 1974 era-lhes alheia. Além disso, a imagem que ilustrava esse número, uma fotografia do checo Josepf Koudelka, “O olhar de Ulisses”, também me levou a pensar que um dia iria escrever um livro sobre esse tema. Guardei esse número muito bem guardado. Catorze anos depois, escrevi Os Memoráveis. Os protagonistas são jovens que nasceram depois do 25 de Abril e os memoráveis vêm apeados, e envoltos em arames, como na fotografia de Koudelka.
CS – Sente-se que fez uma pesquisa histórica e que, tal como Ana Maria e os colegas, entrevistou diversas pessoas. Houve, de facto, um processo de pesquisa para a escrita deste romance?
LJ – Sim, houve um processo de pesquisa não sistemático. Ao longo dos anos fui acumulando dados. Livros, artigos, documentários, entrevistas. Não sabia bem se iria usar ou não. O assunto parecia-me inevitável, mas ao mesmo tempo ele já se tinha cristalizado e banalizado. Mais próximo, fiz várias entrevistas. O contacto com determinadas figuras confirmava a minha ideia. Era preciso escrever sobre o “Olhar de Ulisses” português.
CS – Definiria este romance como um romance histórico ou historiográfico?
LJ – Nem uma coisa nem outra. Este romance é um híbrido, eu sei, tem uma parte que toca no histórico, mas eu escrevi sobre o momento da História em que os dados reais se transfiguram em lenda. Trata-se de um livro sobre uma mitologia. Escrevi sobre factos irreais para tentar atingir a realidade. O romance histórico ou historiográfico procura revelar dados reais. Seja como for, a base dos factos, essa corresponde ao real. Procurei criar uma mitologia sem mentir.
CS – No romance A Costa dos Murmúrios parte de um texto inicial, um relato oficial, que serve de chave ou puzzle a ser desconstruído ao longo do romance. Aqui parece seguir-se um processo inverso, em que se parte da história já conhecida ou mitificada para aquilo que é realmente lembrado, terminando com o argumento enquanto “registo factual”. Concorda?
LJ – Concordo. É um processo inverso. Em Os Memoráveis, parte-se do mais claro para o obscuro que o mergulho na des-razão determina. Em A Costa dos Murmúrios, como diz, o processo é inverso.
CS – Que memória tem do 25 de Abril? E dos tempos vividos antes da revolução?
LJ – É impossível responder a essa questão. Escrevi dois livros sobre o tema, este e O Dia dos Prodígios precisamente para dar eco dessa memória. O Antes e o depois. Talvez todos os meus livros sejam sobre esses dois tempos. Assumo-me como uma espécie de cronista do tempo que passa. E escrevo ficção porque não posso nem sei falar da realidade de forma direta. Toda a minha memória possível está nos livros que fui escrevendo.
CS – Até que ponto é que a Liberdade se reflete no seu trabalho?
LJ – A Liberdade, a santa Liberdade como dizem alguns, levou-me a escrever. Não sei se teria publicado se não houvesse liberdade. Talvez escrevesse sempre, tal como os meus pais que sempre tomaram as suas notas pessoais, um e outro sempre fizeram diário. Mas a verdade é que escrever para publicar é diferente. Sou mais radical. Se não tivesse havido liberdade, se ela não tivesse chegado quando chegou, provavelmente não teria publicado nada, e talvez nem tivesse vivido para além dos trinta anos. É uma assunto crucial, vivencial, que determina a vida desde o quotidiano e o íntimo ao amplamente social e literário.
CS – O desencanto que se sente nestes heróis, outrora memoráveis, é o reflexo do que sente em relação ao país de hoje?
LJ – Estes heróis, chamemos-lhe assim, hoje ainda são memoráveis. Quanto mais o tempo passa mais memoráveis surgem. Eles enfrentaram um risco imenso. O seu desencanto coincide com o meu desencanto. Mas eles, como personagens, têm esperança. A sua esperança é a minha esperança.
Portugal literário
CS – E em termos literários como vê o país?
LJ – Em termos literários, vejo o país muito bem. Há um naipe de escritores jovens que estão a dar continuidade e a renovar a Literatura portuguesa. Assim estivessem as exportações e as cotas de mercado.
CS – O facto de a protagonista ter estado ausente do país confere-lhe um olhar crítico mais objetivo?
LJ – Sim, o facto de falar a partir de longe, e depois de ter feito experiências fundamentais na vida, como seja a participação enquanto repórter de guerra no Médio Oriente, leva-a a compreender melhor a situação portuguesa. Mas a sua perspetiva é ao mesmo tempo distanciada, o que lhe confere sentido crítico, e ao mesmo tempo enfática, já que tem um envolvimento emocional muito particular com o seu pai, bem como com todos os entrevistados. Esse olhar misto de frieza e exaltação torna-se fundamental para percorrer os vários degraus descendentes da fábula.
CS – Habituou-nos, nos seus romances, a uma jovem que vê o mundo com uma certa ingenuidade ou inocência, muitas vezes perdida no final. Ana Maria, a Machadinha, como o próprio nome indica, revela-se uma surpresa na sua galeria de personagens, pois é uma mulher aparentemente fria, calculista, que desde o início do romance indicia não revelar tudo o que sabe (parecendo deixar a inocência para Margarida Lota). Foi uma decisão consciente?
LJ – Foi um processo consciente. Como disse atrás, essa figura ambígua fazia-me falta. Eu precisava de alguém que visse o que se passava de forma lúcida e ao mesmo tempo amasse profundamente o mundo que criara os elementos detestáveis. Essa ambivalência era-me fundamental. Ela surgia-me desde o início guardando esse segredo. A forma secreta como se desenrolava a sua paixão destroçada era-me muito importante. Não sei até que ponto essa dissensão interior faz parte da minha própria dissensão.
CS – Foi uma das escritoras escolhidas pelo «Magazine Littéraire» como uma das Dez Vozes mais Significativas da Literatura estrangeira. Como acolheu essa notícia?
LJ – Foi surpreendente, mas não recebi esse destaque como uma responsabilidade. Eu deixo andar. O que for soará.
Rituais e horários da arte da escrita
CS – Escreveu este romance em cerca de seis meses. Segue algum ritual ou horário de escrita?
LJ – Não sigo nenhum ritual. Neste caso, escrevi de manhã à noite. Até entorpecer. Quando acabou, fui olhar o mar. O Verão tinha passado, o Outono também e não o tinha visto.
CS – Este romance tem uma leitura mais fluída, quase ininterrupta, onde a linguagem parece ser reduzida ao osso, ao essencial, sem grandes floreados e num registo muito próximo da oralidade, como se entrássemos na “corrente de consciência” da personagem. Foi intencional?
LJ – Não foi intencional. Tinha pressa de escrever o que queria dizer. Esse ritmo de escrita é o ritmo da urgência em dizer o essencial.
CS – Na obra O Dia dos Prodígios, a ilusão ou o fantástico deturpam a realidade da revolução, sentida como um ato falhado que não chega às pessoas. Em Os Memoráveis, sente-se novamente uma certa aura quase mágica, aluada (no final do livro quando se encontram os poetas), onde tudo parece ser fruto do acaso. Reafirma-se essa mensagem de a revolução ter sido um ato falhado?
LJ – Não, a Revolução não foi um ato falhado. Foi um ato hiper-conseguido. Hoje, cada vez mais, se destaca como a Revolução dos Cravos foi precursora de várias outras mudanças, na Europa, na América Latina, e um pouco por toda a parte. O problema não foi a revolução que até terminou no momento exato em que poderia ter existido uma contra-revolução, alguma coisa que destrói a renovação das sociedades. Esse perigo também foi evitado. O problema foi a imperfeição da nossa democracia que foi branda e deixou criar uma crescente promiscuidade em vários sectores vitais da sociedade. A culpa não foi da Revolução.
CS – Das memórias que ficaram da Revolução, a principal imagem ou sensação parece ser a de algo risível. Recordou-me aquela imagem de Milan Kundera, em O Livro do Riso e do Esquecimento, em que as personagens de tanto rir face à realidade que as rodeia levantam voo. Pode comentar?
LJ – Muito interessante essa associação. Kundera é um dos meus autores preferidos. Admiro imenso a capacidade que esse autor tem de transfigurar a realidade política em irrealidade ficcional. É um dos grandes criadores do século XX a quem ainda não foi feita a devida justiça. Não sei se as minhas personagens levantam voo. Não fui capaz de inventar uma metáfora tão forte. Mas em Argumento para Bob Peterson, e última parte do livro, o voo acontece a partir da supressão do negrume. O voo surge, se é que surge, secando todas as lágrimas, escondendo todos os defeitos, e entregando à posteridade apenas o feito feliz. O resto fica para trás, nos subterrâneos do passa¬do, lá onde se foi até ao coração do coração da fábula e a realidade doeu a ponto de matar. Apesar de tudo, os poetas riem.
Entrevista realizada por:
Paulo Serra
Investigador da UAlg associado ao CLEPUL