Jonas Vingegaard voltou este domigo ao seu ‘eu’ dominante, com a atitude cada vez mais ambiciosa na estrada a contrastar com o hermetismo e a simplicidade que não perdeu, apesar do estatuto no pelotão.
Menos de um ano depois de uma queda grave na Volta ao País Basco o ter deixado 12 dias no hospital e feito questionar a continuidade no ciclismo, ideia afastada após ser segundo no Tour, surgiu na ‘Algarvia’ menos ‘seco’ e dominador do que nos dois inícios de época anterior, n’o Gran Camiño, mas igualmente eficaz, impondo-se na luta pela amarela final com um contrarrelógio perfeito até ao alto do Malhão.
Entusiasmante na bicicleta, o dinamarquês de 28 anos é extremamente introvertido fora dela, num contraste gritante com o exuberante Tadej Pogacar (UAE Emirates), o seu ‘arquirrival’ e o grande favorito dos adeptos da modalidade, ‘apaixonados’ pela espontaneidade do esloveno.
No entanto, nada há a apontar ao ciclista da Visma-Lease a Bike, que, apesar de não gostar da exposição a que, sobretudo, os dois triunfos do Tour o ‘obrigaram’, é, no contacto direto, uma pessoa extremamente educada, humilde e até sensível, ainda que nesta ‘Algarvia’ tenha revelado um lado de si nunca antes visto: derrotado na Fóia, lidou mal com a contrariedade e recusou falar com os jornalistas, apesar dos reiterados apelos do assessor da Visma-Lease a Bike.
Vingegaard é um mistério: profundamente familiar – gravita em torno da mulher – e dependente da sua equipa, a quem confia cegamente o seu destino, sem hesitar (ou questionar), transfigura-se na estrada, onde desde há dois anos demonstra um instinto ‘canibal’, como atestam os triunfos em algumas das mais importantes provas do calendário, como o Critério do Dauphiné e a Volta ao País Basco, em 2023, ou o Tirreno-Adriático e a Volta à Polónia, no ano passado, sem mencionar a supremacia n’O Gran Camiño.
É nas montanhas, e não nos compromissos mediáticos ou nas redes sociais, que o delgado dinamarquês se sente bem, embora só as tenha descoberto tarde, numas férias familiares nos Alpes franceses, durante as quais chegou a aventurar-se no temível Galibier.
“Descobri a minha primeira subida aos 16 anos. Depois disso, percebi que não era nada mau”, contou.
Nascido em 10 de dezembro de 1996 em Hillerslev, uma pequena aldeia piscatória de apenas 370 habitantes, inserida numa zona rural de gente humilde e trabalhadora na costa do Mar do Norte, o corredor da Visma-Lease a Bike experimentou várias modalidades antes de descobrir a bicicleta: andebol, natação, badminton e até futebol, mas a sua estatura diminuta ‘impediu-o’ de fazer carreira naquele desporto.
Fervoroso adepto do Liverpool – o site especializado CyclingWeekly conta que já foi ‘apanhado’ várias vezes em Anfield -, o miúdo louro e franzino descobriu a paixão pelo ciclismo aos 10 anos, quando a Volta à Dinamarca passou à sua porta.
Embora tenha sobressaído imediatamente num teste organizado pelo clube local para um grupo de crianças, e semanas depois tenha conquistado o primeiro pódio numa corrida, Vingegaard teve dificuldades em afirmar-se no panorama velocipédico nacional, porque o seu ‘peso pluma’ (tem 1,75 metros e 60 quilos) era incompatível com as ventosas planícies dinamarquesas.
A ColoQuick CULT, uma equipa continental, reparou no seu potencial e contratou-o como ‘estagiário em 2016, mas a sua progressão foi interrompida em maio de 2017, quando partiu o fémur numa queda grave na Volta aos Fiordes.
Sem poder andar de bicicleta, decidiu começar a trabalhar numa fábrica de processamento de peixe de Hanstholm, o porto dinamarquês que espreita o Báltico e de onde via partir os ‘ferries’ para as Ilhas Faroé, um emprego que descreveu como “relaxante”.
O bicampeão da Volta a França (2022 e 2023) ‘absorveu’ dessa experiência e das origens humildes os seus principais traços de personalidade, aos quais se junta uma bondade reconhecida por colegas e adversários, como Pogacar, que o define como “um grande tipo”.
Cerebral como poucos – na estrada, nunca se desvia do ‘plano’ traçado para si pela Visma-Lease a Bike -, é devoto à família, nomeadamente à mulher Trine Hansen, que conheceu na ColoQuick CULT (era a responsável pelo marketing) e tem um papel fundamental na sua carreira, que ‘descolou’ quando foi descoberto pela equipa neerlandesa, depois de uma temporada de 2018 na qual venceu, por exemplo, o contrarrelógio da Volta a França do Futuro.
“Jonas tem tendência para esconder as emoções, trabalhamos juntos para que ele se abra mais e para que não seja sempre eu a tomar as decisões”, reconheceu a mulher responsável pela ‘gestão de ansiedade’ do dinamarquês, uma missão que divide com a Visma.
A equipa neerlandesa soube que tinha de ‘agir’ quando Vingegaard cedeu à pressão na Volta a Polónia de 2019, trabalhando o seu ‘psicológico’ e dando-lhe tempo para crescer. Levou-o à Vuelta2020 para trabalhar para Primoz Roglic, e em 2021 viu a paciência retribuída com o espantoso segundo lugar no Tour.
Esse ‘fantasma’ pareceu regressar quando o corredor simplesmente ‘desapareceu’, após a primeira vitória na Volta a França, com as notícias sobre uma possível depressão, desmentida pelo próprio, a multiplicarem-se durante meses.
No entanto, a segunda vitória no Tour, conquistada com uma supremacia arrasadora, ajudou à sua autoconfiança e aumentou-lhe a ambição, como se viu na Vuelta2023, na qual tardou em respeitar a liderança do colega Sepp Kuss – os diretores da equipa tiveram de intervir para impedir o dinamarquês e Roglic de atacar o norte-americano.
Vingegaard chegou a esta Volta ao Algarve sem ter passado por um estágio da altitude e após seis meses sem competir, para poder desfrutar do nascimento do segundo filho, mas deixou já um ‘aviso’ aos adversários para uma época na qual tentará recuperar o reinado no Tour.
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