Apartir deste domingo, o Vaticano tem, oficialmente uma nova Constituição. Chama-se “Praedicate evangelium”, (pregai o Evangelho) e revoga as normas inscritas no “Pastor Bonus” (Bom Pastor), concluído em 1988, pelo então Papa, João Paulo II. A mudança de títulos, só por si, espelha bem o sentido da reforma que Francisco quer levar a cabo: mais do que centrada em si mesma, o Papa quer uma Igreja virada para fora e capaz de cumprir a sua missão evangélica. Não hesita em acabar com o “carreirismo”, como ele próprio o designa, limitando os anos de mandato em cada cargo, reduzindo o número de organismos de chefia na Igreja e abrindo ainda a porta a leigos – e a mulheres – para chegarem ao topo da hierarquia vaticana.
A revolução chegou a Roma, depois de nove anos de pontificado de Francisco e de outros tantos anos de trabalho da equipa especial nomeada pelo Papa para proceder à reforma da Cúria. O diagnóstico foi feito, logo à sua chegada a Roma, quando perante bispos e cardeais, Francisco fez questão de enunciar os 15 pecados, ou doenças graves, que atingiam o coração da Igreja católica. Do “Alzheimer espiritual” ao “terrorismo dos mexericos”, passando pelo “exibicionismo”, a “burocracia” ou a “graxa aos chefes”, o Papa não poupou palavras para mostrar o estado de choque em que ficou perante as primeiras impressões que a Cúria lhe causou.
Agora, com a nova Constituição na mão, o organigrama da Cúria romana passa a ser composto pela Secretaria de Estado, 16 dicastérios, 3 tribunais e ainda os organismos económicos e restantes institutos da Igreja. O Papa deixa claro, logo no preâmbulo, que a estrutura da Igreja, não pode ser vista como um centro de poder. “A Cúria Romana não se coloca entre o Papa e os bispos, mas ao serviço de ambos”, diz Francisco, para quem “todos os cristãos, em virtude do Batismo, são discípulos-missionários”, razão suficiente para que a reforma da Igreja “deva incluir o envolvimento de leigas e leigos, também em papéis de Governo e responsabilidade”.
Como sinal dos tempos de mudança, o primeiro Dicastério (designação que agrega as antigas Congregações e os Conselhos Pontifícios) passa a ser o da Evangelização, que será presidido pelo próprio Papa Francisco. Em segundo lugar na lista hierárquica surge o Dicastério da Doutrina da Fé – que integra a Comissão de Protecção de Menores com a sua própria estrutura dirigente, num sinal claro da importância dada por Francisco ao combate à questão dos abusos
Gigantesca dança de cadeiras
Francisco que reformar a Igreja e fazer da evangelização o “primeiro serviço que pode prestar a cada pessoa e a toda a humanidade no mundo de hoje”. Uma tarefa, que melhor do que ninguém, o Papa sabe que não pode ser feita apenas por decreto. E, menos ainda, será possível fazer uma revolução com uma Cúria desconfiada do caminho proposto e acomodada,
há décadas (senão séculos) ao conforto instalado entre as luxuosas quatro paredes da Santa Sé.
Mas, para isso, também a nova Constituição tem solução. Por decreto, fica agora estabelecido um prazo limite de cinco anos de mandato para cada alto cargo no Vaticano (renovável apenas uma vez) o que serve para travar a possibilidade de uma má escolha se perpetuar para além do desejável. Isto, conjugado com o limite dos 75 anos para o exercício de cargos de cardeais e arcebispos, permite um refrescamento inédito na história da Cúria.
Nos próximos tempos, é de prever uma gigantesca dança de cadeiras entre os principais organismos do Vaticano. Francisco tem agora carta branca, por exemplo, para renovar mais de dois terços dos mais altos responsáveis das atuais Congregações. Isto porque, seis dos atuais nove prefeitos têm mais de 75 anos e por isso têm todo o enquadramento legal para poderem vir a ser substituídos. São eles o cardeal canadiano Marc Ouellet (Congregação para os bispos), o argentino Leonardo Saudi (Igrejas Orientais), os italianos Beniamino Stella (Clero) e Giuseppi Versaldi (Educação Católica), o espanhol, Luis Ladaria (Doutrina da Fé) e o brasileiro João Braz de Aviz (Institutos Religiosos). A juntar-se a este núcleo pode ainda o Papa retirar Robert Sarah, o cardeal guineense que dirige a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos que, apesar de não ter atingido o limite de idade, está há mais de cinco anos no cargo. Sarah é um dos cardeais que mais se tem destacado entre o grupo de conservadores do Vaticano e tem, assumidamente, manifestado o seu desagrado por muitas das tentativas de reforma do Papa Francisco.
Os dados estão lançados. Francisco tem agora o instrumento legal para concluir a sua reforma da Cúria, assim como os meios para limpar as teias de areia do governo do Vaticano. A sua revolução começa agora.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL