Fico pasmada, triste e desiludida quando o mais fundamental e elementar não merece concordância porque, no fundo, estamos a abstrair-nos de reconhecer o que é justo e meritório (não só) para a nossa espécie, mas também para outras espécies e para o nosso planeta.
Somos tão espectaculares até deixarmos de o ser. Defendemos direitos fundamentais até deixarmos de os defender. E parece-me que até aquelas pessoas que dão a cara por causas importantíssimas na sociedade e que tentam quebrar com o pré-estabelecido, por vezes, não conseguem sair da sua própria caixa. Estão numa ‘caixinha’ um pouco maior, mas ainda assim não rompem com outros paradigmas obsoletos e ultrapassados.
Fiquei assim, pasmada e desiludida, no pretérito dia 5 de Fevereiro, quando foi rejeitado o Projecto de Resolução (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=41804), na 44ª Reunião Plenária da Assembleia da República, que pretendia recomendar ao governo a inclusão de médicos veterinários como agentes de protecção civil, criação de equipas de salvação e resgate e a elaboração de planos de socorro e emergência municipais, regionais e nacionais, onde incluam obrigatoriamente os animais de companhia, pecuária e selvagens.
E fiquei ‘essencialmente’ assim porque esta é uma matéria ‘essencial’.
Depois do verão ‘em chamas’ que tivemos, do profundo luto em que o país esteve (e atrevo-me a dizer que ainda está), parece que não aprendemos a arte da empatia.
Projecto de resolução foi rejeitado
O projecto de resolução (para ser feita uma mera recomendação) foi rejeitado.
Ainda estive a pensar se existiriam motivos relevantes para votar contra ou para a abstenção porque, ao contrário de algumas pessoas, eu delego confiança em quem nos representa em assentos parlamentares. Pensei, matutei. Mas não consigo entender os motivos, não consigo.
Não pretendo que pensem igual a mim, mas (caramba!) não quero acreditar que este projeto de resolução tenha sido rejeitado com presumido receio de abrir uma porta maior à proteção de outros animais, entre os quais os animais de quinta, ditos de pecuária, e os animais selvagens.
A Protecção Civil e suas equipas procuram proteger pessoas e bens. Os animais não são pessoas e não são meras coisas – não são inanimados e são sencientes. Podem eventualmente ser ou não bens de alguém, no entanto, têm um estatuto próprio e maior proteção, por isso são dignos de resguardo superior àquele que é conferido às meras coisas. Por terem vida consciente são dignos de maior proteção do que o meu carro ou a minha casa.
Os animais não são ‘bens de outrem’
E os animais que não são ‘bens de outrem’, pela sua natureza, caso dos animais selvagens, são tutelados de sobremaneira que, em alguns casos, atos contra a sua vida ou seu habitat são considerados como crime, e punidos com pena de prisão até cinco anos (cfr. artigo 278º n.º1 do Código Penal).
No limite, seria defensável afirmar que os animais podem não ser propriedade de uma pessoa, mas são parte de um bem maior que é de todos e de todas, o Ambiente.
Com a aprovação deste projeto não se estaria a fazer nada de novo. O que se estaria a fazer era puxar um pouco mais a alavanca para que Portugal seguisse em frente e em total consonância com as diretrizes da União Europeia.
Somos da União Europeia para uma coisas, mas já não seremos para outras? Embora a União Europeia não tenha alçada para legislar em todas as matérias e quando trata de animais essencialmente o faz no âmbito da agricultura e do mercado interno, a sua estratégia para o bem-estar animal é guiada pelo principio geral de que “todos/as somos responsáveis” (https://ec.europa.eu/food/animals/welfare/strategy_en).
Temos que ser responsáveis e devemos ser responsabilizados/as.
Em Portugal, criámos um estatuto próprio para todos os animais, pelo qual são objecto de proteção jurídica. Constituímos obrigações para quem detém animais (de companhia e de todos os outros, embora com diferentes níveis de protecção), pois sabemos que sentem e são conscientes das suas emoções. Mas em Portugal não providenciamos meios para garantir esta protecção no caso de uma catástrofe? Isto não parece o caso em que “prega São Tomás: faz o que ele diz, mas não faças o que ele faz”?
Não me vejo minimamente representada na rejeição deste projecto (de recomendação) e creio que não existe vivalma que detenha animais e se sinta representada.
Natureza é um bem jurídico maior
É manifesto que a Natureza é um bem jurídico maior.
Maior porque a tutela penal é essencialmente repressiva e são necessárias outras medidas para proteger este ‘nosso’ bem. Maior porque da leitura do artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe ‘ambiente e qualidade de vida’, é consagrado o direito fundamental de todas as pessoas “a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”.
Muito bem. Direitos e deveres temos, mas como é que nós defendemos o Ambiente e a Natureza se não existem meios adequados e suficientes para tal, em caso de incêndio ou de outras catástrofes?
Pois bem, a nossa Constituição não se esqueceu de estabelecer que incumbe ao Estado assegurar a realização deste nosso direito através i) da ordenação e promoção do ordenamento do território, tendo em vista um equilibrado desenvolvimento e a valorização da paisagem, da proteção de paisagens e sítios de modo a assegurar a conservação da natureza; ii) da promoção do aproveitamento dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e estabilidade ecológica com respeito pelo principio da solidariedade entre gerações, iii) da promoção, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações; e iv) da promoção da integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial.
Também é seguro afirmar que os animais humanos e não humanos, para além das plantinhas – eis a fauna e a flora -, fazem parte da Natureza e do Ambiente, tal como faz a água, a terra e o ar.
Por isso, não entendo como efectivamos esta protecção (constitucional) quando não se aprova um projecto que quer levar adiante ou, corrijo, pretende recomendar que se leve a cabo a realização de um direito fundamental nosso (e considero, à luz dos princípios éticos e de direito natural, também dos animais não humanos e do planeta).
“A nossa Constituição consagra a proteção dos animais na forma de um direito fundamental nosso, animais humanos”
A nossa Constituição não é como outras, que referem expressamente os animais, mas a nossa Constituição consagra a proteção dos animais na forma de um direito fundamental nosso, animais humanos.
Podíamos debruçar-nos sobre isto e sobre o quão é discutível, mais sabendo que há séculos filósofos de renome vêm explicando exaustivamente porque é que um sujeito de uma vida senciente deve ser sujeito de direitos e de proteção, mas se o fizéssemos agora estaríamos a dispersar-nos.
O que interessa é que, na ordem actual das coisas, o Estado deve prevenir a violação deste nosso direito fundamental ao Ambiente, e deve efectivá-lo. Fazia-lo bem se este projeto tivesse sido aprovado. Seria um passo firme.
Notemos que se trata de um projecto de resolução pelo qual se recomendava o Governo a empreender esforços para o efeito, nem estamos a falar de um projecto de lei (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=41867), que também existe, mas não me alongarei muito mais.
Ao fim e ao cabo, tudo para concluir que a proteção dos animais em caso de incêndio ou de outras catástrofes, se ainda não é um direito deles, não há dúvidas de que é um direito fundamental nosso e das gerações vindouras.
Esperemos que não se saia da caixa só quando esta estiver (novamente) em chamas.