A declaração da lei marcial de emergência pelo presidente, Yoon Suk Yeol, tem atraído os olhos do mundo para a Coreia do Sul. As suas consequências inquietam o povo, que recorda com dor a última vez que foi acionada.
O instituto da lei marcial consiste numa medida extraordinária, passível de ser decretada pelo presidente, desde que seja inevitável para restaurar a ordem pública ou defender a segurança nacional. Constitucionalmente consagrada (art.77º da Constituição da Coreia do Sul), opera através de uma restrição de direitos civis e pela substituição da legislação regular por legislação militar.
Este ano, o mundo relembrou a última vez que esta medida foi requerida através da atribuição do Prémio Nobel da literatura a Han Kang, autora sul-coreana, que descreve em Atos Humanos o resultado da aplicação da lei em 1980: o conhecido massacre de Gwangju.
Historicamente, o país tem evitado o uso da lei marcial depois do evento traumático ocorrido há 45 anos atrás. Em maio desse ano, teve lugar uma repressão militar contra um movimento popular que resultou na morte de milhares de pessoas (números que ficaram longe de apurar, segundo a escritora). Tornou-se o símbolo da luta pela democracia, quando a Coreia do Sul vivia sob um regime militar autoritário, após o assassinato de Park Chung-Hee, que gerou um vácuo de poder. Outras figuras totalitárias declararam a lei marcial para consolidar o controlo sobre o país, suspendendo a constituição e limitando as liberdades. Seguiram-se as prisões em massa, torturas e execuções extrajudiciais.
A lei marcial, revogada pós-massacre, abriu caminho para eleições democráticas à restauração dos direitos populares. Uma vez usada como mecanismo opressor, é vista, atualmente, como esquema de afirmação de poder. “Tantas existências esbatidas no vazio, como tinta na água… como se não tivesse sido a própria nação a matá-los”, lembra a autora.
Esta opção é fundamentada pela “proteção da ordem democrática constitucional e erradicação das forças pró-norte coreanas”, tal como foi no passado, não sendo mais do que uma tentativa do presidente se afirmar, tendo em conta que perdeu popularidade e está bastante enfraquecido aos olhos do povo. Em parte, por ter rejeitado investigações que envolvem escândalos com a sua mulher, pela crise no setor médico, e pela inação política quanto às mortes que ocorreram no Halloween, na sequência das multidões descontroladas, de acordo com o The Washington Post.
Acontece que a lei marcial, segundo está prevista, carece de aprovação parlamentar, e nem os membros do seu partido, nem da oposição, que ocupam os lugares no parlamento, parecem estar de acordo. Contam-se 190 de 300, os votos contra. O acesso ao espaço de exercício democrático também foi vedado aos deputados por tropas.
Segundo o The Guardian, houve, entretanto, uma conferência de imprensa cujo Presidente admitiu levantar a lei marcial. A opção por este instituto tão radical para, umas horas depois, ser revertido, faz desconfiar a oposição, e o povo. Terá sido esta jogada o suicídio político de Yoon Suk Yeol? E terá recuado exclusivamente por pressão da Casa Branca?
Identificar um líder com sede de autoridade não é grande desafio. Primeiro, espalha-se informação sobre uma ameaça perigosa que preocupa o povo. Inquietados os civis, legitima-se a restrição de direitos e o afunilamento de liberdades. O passo seguinte, é a preferência por uma onda de medo crescente e que não cesse, para que se possa alavancar mais e mais proibições. De entre elas, a preferida: a proibição de associação e organização. O controlo das forças armadas e da polícia está “ao serviço do povo” ao mesmo tempo que para ele dispara.
Torna-se urgente lembrar que a existência de oposição é sintoma da democracia e qualquer tentativa de a eliminar é um passo a caminho da sua morte. A existência de memória histórica não é garantia da sua não repetição, especialmente neste panorama político tão preocupante a nível mundial, em que os extremos ganham força.
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