Vítimas ouvidas pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica relataram perturbação da sua sexualidade e afastamento da religião após os abusos, segundo testemunhos hoje citados.
“Condicionou a minha sexualidade. Influenciou o início da minha vida sexual”, disse uma das testemunhas entrevistadas pelo grupo de trabalho, cujo testemunho foi lido hoje na sessão de apresentação do relatório final da comissão independente.
Outra vítima citada referiu que nunca conseguiu “ter um namorado, uma relação afetiva até aos 40 anos”.
“Um enorme problema que desorientou a minha sexualidade, pois mais tarde nesse verão repeti tudo com o meu primo mais velho emigrante em França, pois eu pedi-lhe para lhe agradar e ele gostou”, contou outra.
Outros testemunhos revelam que a relação de algumas vítimas com a Igreja Católica ficou destruída.
“Afastei-me da Igreja e de religiões organizadas. Nos anos seguintes não conseguia entrar numa igreja, sentir o cheiro a incenso, a flores e ao perfume que usava. Durante uma década entrava facilmente em discussões com católicos, culpando-os do que me tinha acontecido”, disse um dos visados.
“Odeio. É a única coisa que odeio na vida. A Igreja, o credo, as crenças e pessoas ligadas a ela. Desde que sou autónoma, nunca fui a uma igreja e não acredito em Deus”, acrescentou outra.
Entre os testemunhos citados durante a sessão de hoje, algumas vítimas relatam memórias de ordens, segredo e humilhação, com o uso de ameaças verbais e não verbais.
“Meu menino toca aqui, e faz assim, e até colocando minha cabeça sobre o pénis. Fazia o que ele queria sem dar palavra a não ser a sua ordem. Era pequenita, estava só e abandonada, só tinha então esta mesma avó, nem percebia bem o que lhe dizia depois do abuso?”, afirmou uma vítima.
“Se contares mato-te. (…) Não digas a ninguém senão vais direitinha ao inferno”, recordou outra.
As vítimas contaram também o que os abusadores lhes diziam depois dos abusos.
“Estiveste bem, Deus está orgulhoso de ti. Gostaste, ele perguntava. Eu não sabia o que responder. Se me sentia melhor. Que Deus me amava mais do que qualquer uma ali no colégio. Dizia que eu era especial”.
Após os abusos, alguns abusadores desculpavam-se, mas responsabilizavam a vítima: “Pedia desculpa e dizia que eu não o devia seduzir. Que se sentia com remorsos porque era padre e precisava de se afastar, até que voltava outra vez, pedia desculpa e voltava com carícias, a dizer que gostava muito de mim e começava tudo outra vez…”.
As vítimas revelaram ainda ameaças e subornos para que os abusos ficassem em segredo.
“Dizia que se contasse alguma coisa a alguém, nunca mais via os meus pais. Ameaçava denunciar-me aos meus pais e pároco. [Dava-me] dinheiro e ameaçava a minha mãe”, acrescentaram.
A comissão, que começou a recolher testemunhos em 11 de janeiro de 2022, revelou hoje ter recebido 564 testemunhos, dos quais 512 foram validados, os quais são relativos a pelo menos 4.815 vítimas.
Os casos de abusos sexuais revelados ao longo de 2022 abalaram a Igreja e a sociedade portuguesa, à imagem do que tinha ocorrido com iniciativas similares em outros países, com alegados casos de encobrimento pela hierarquia religiosa a motivarem pedidos de desculpa, num ano em que a Igreja se vê agora envolvida também em controvérsia, com a organização da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.
Hoje será conhecida a primeira reação da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), presidida pelo bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, e para 03 de março foi já convocada uma assembleia plenária extraordinária da CEP para analisar o relatório.