Assim que nascemos rodeiam-nos de peluches de ursos, gatos, elefantes, vaquinhas, girafas e ovelhas. Fazem-nos ver desenhos animados em que os protagonistas são animais da quinta, famílias de porquinhos, divertidas rotinas de um gato doméstico, coelhos que vivem no prado aventuras incríveis. Humanizam estas personagem ao ponto de as vestir como se vestem os humanos, vivendo histórias em que nos revemos. Levam-nos ao cinema ver histórias de porquinhos, peixinhos e leões. Vestem-nos pijamas e camisolas com ursos, tigres, ovelhas e pintos.
Até que um dia percebemos que nos têm colocado no prato esses mesmos animais.
É um momento difícil e confuso para qualquer criança, sobretudo para aquelas que estabelecem relações directas com estes animais. No meu caso, fruto na circunstância de o meu avô criar coelhos, foi um momento de enorme violência, aquele em que a minha mãe me informou que o almoço era coelho. Num primeiro momento, pensei que era uma piada de mau gosto. Quando finalmente percebi que não, que era mesmo um coelhinho morto que jazia ali naquele ensopado, recusei-me a comer, aterrorizada, e nunca mais na vida comi coelho.
Entretanto os anos vão passando, e aquela ligação de empatia que criámos com os animais na primeira infância vai-se esbatendo. Vamos começando a aceitar que é assim mesmo, que os animais são para comer, que também nós somos animais, somos omnívoros e comer bichos é uma espécie de ‘mal necessário’.
Já em idade adulta, alguns interiorizam de tal forma este aspecto da cultura que militam a seu favor e vêm os vegetarianos quase como que uma afronta à natureza. Outros preferem não pensar no assunto, procurando convencer-se que os animais são abatidos de acordo com processos que garantem que não sofram. No fundo, no fundo, sabem que o consumo desenfreado de carne produziu uma indústria cruel, que comete as maiores atrocidades a estes animais, privando-os de uma vida minimamente digna, confinando-os a espaços exíguos, fornecendo-lhes alimentos e medicamentos que lhes provocam mau estar, dor, separando-os abruptamente das crias, transportando-os violentamente até um matadouro, onde acabam por morrer, não sem antes sentirem medo, ansiedade e tristeza.
Ora, em idade adulta situava-me entre estes últimos. Os que sabem mas preferem não pensar, os que conseguem fazer esse exercício que hoje me parece um malabarismo impossível: sei mas não sei se é bem assim.
A minha relação com os animais mudou, para sempre, quando adoptei um gato. Logo no primeiro dia, aquele bichinho pequenino, assustado fez-me sentir uma coisa diferente. Senti verdadeira empatia. Estava ali um animal carente, que tinha acabado de ser separado da mãe e precisava de conforto.
E, de repente, aquela colónia de gatos que havia ali perto de casa, e por onde passava todos os dias pareceu-me diferente. Parei e olhei bem aqueles bichinhos, todos os dias numa luta desenfreada pela vida, por algum calor, por comida. Os cães que ia encontrando….estariam perdidos? Teriam sido abandonados? Onde os outros (não) viam um animal, eu passei a ver seres sedentos de conforto, capazes que são de sentir frio, saudade, fome, medo ou tristeza.
Daqui até ao passo seguinte, o de olhar todos os animais novamente como amigos, foi um instante.
Vi alguns documentários, li algumas coisas. Importava-me sobretudo perceber a consciência que o animal tem ou pode ter do sofrimento físico ou emocional. E surpreendi-me. Mesmo quando as fontes não eram orientadas em prol da causa animal, tratando-se muitas vezes de aparentemente inócuos documentários sobre a vida animal, fui descobrindo um nível de complexidade emocional nestes animais que desconhecia.
E decidi que nunca mais ia comer carne, o que já acontece há alguns anos.
Tenho muitas dúvidas sobre a erradicação da carne, de forma absoluta e definitiva, da dieta humana, sobretudo nas fases de crescimento durante os primeiros anos. A discussão existe no seio da comunidade médica e mesmo quem defende uma dieta vegetariana, sabe que a compensação não é linear. Dá trabalho, é preciso estudar, perceber onde e sobretudo como é que se vai buscar as proteínas.
Não trago a palavra da salvação a ninguém.
O que eu sei, sendo uma verdade que serviu para mim, é que não vou mais comer um pedaço de um porco que viveu uma vida miserável, que provavelmente sofreu noites de angústia e sofrimento quando foi separado da cria ou que sentiu pavor nos momentos antes da sua morte. E tudo isto para acabar num prato onde provavelmente nem vai ser integralmente comido porque “é preciso guardar estômago para a sobremesa”.
Como digo, não quero evangelizar ninguém. Sou incapaz de tecer qualquer juízo sobre aqueles que continuam a comer carne. Já estive lá e sei que não é, mesmo, por mal. Não sei também dizer se a humanidade pode subsistir com o mesmo nível de desenvolvimento cognitivo sem consumir carne. Mas é porque somos o animal mais dotado de empatia, porque somos o único capaz de juízos de moral, capaz de pensamentos éticos, que estamos condenados a viver esta angústia e devemos, pelo menos, fazer a discussão pública, tentar minorar os sofrimentos e sensibilizar os nossos filhos, os nossos pais e os nossos amigos sobre a enorme responsabilidade que é ser-se humano.