Ser português é ser muitas coisas mas é também ser um alvo fácil do frio – do frio que entra pelas nossas casas adentro. Que casas são estas as que temos? “Com os salários que há em Portugal, as pessoas só podem ter casas dessas” onde se passa frio, diz Carlos Mineiro Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros. Mas o dinheiro não é a única variável em falta.
Há uma resposta cultural e outra histórica. “A maior falácia é a de que temos um clima ameno”, frisa o bastonário. “É vulgar no Alentejo um local com 45ºC no verão atingir -4 no inverno. É uma amplitude de quase 50 graus.” Nada disto é novidade, nem pode ser atribuído às alterações climáticas. “Sempre foi assim e depois, de cada vez que vem uma vaga de frio, gritamos ‘ai, ai, ai’”.
A ideia culturalmente aceite de que o nosso clima é ameno fez nascer prédios e moradias onde o conforto térmico nunca foi prioritário nem no verão nem no inverno. Nos anos de 1950 e no boom da construção entre as décadas de 70 e 80 “havia no mercado práticas e materiais inadequados”, explica Carlos Mineiro Aires.
As janelas de alumínio, o vidro simples e os telhados com fugas — “a telha vã, como lhe chamamos” — deram origem a um parque habitacional hoje “envelhecido” e em grande parte “com humidades interiores”, feito de construções “mal orientadas” que, outra vez o clima, não aproveitam o sol que aquece o país durante mais de metade do ano. “Há casas que nunca apanham sol, o que no verão pode ser muito bom mas no inverno é um martírio” transformado em humidade e bolor.
“É triste que num país com tanto sol não consigamos tirar partido disso. É muito fácil orientar bem um edifício”, garante Aline Guerreiro, arquiteta coordenadora do Portal de Construção Sustentável (PCS), que em 2017 lançou um inquérito, em parceria com a Quercus, sobre o conforto térmico em casa, ao qual 80% dos interpelados responderam que têm de gastar muita energia para estarem confortáveis. Anos anos depois, acredita a arquiteta, não há resposta substancialmente diferente para dar. “É um problema de fundo porque foram usados os materiais mais baratos durante muito tempo.” O PCS prepara novo inquérito para “perceber o que mudou”.
Combater o frio: um aquecedor ligado seis horas por dia são mais €70 na conta da luz
Aline Guerreiro conta que mesmo hoje, em consultas de apoio à construção de edifícios sustentáveis, a prioridade é sempre baixar o preço, recorrendo a materiais à base de petróleo para isolar os edifícios. “Esses materiais, que são muito mais baratos, são péssimos em durabilidade”, por oposição à cortiça e a outras matérias-primas que, mais duráveis, não obrigam a trocas permanentes.
“A dificuldade é convencer as pessoas a pensar a longo prazo”, lamenta a arquiteta. E mudar os fatores que atraem um comprador. “Não adianta aparecer uma casa bonita com hidromassagem, que é uma coisa que agarra logo as pessoas, se depois obrigar a gastos enormes para se manter quente.”
Falta mudar a mentalidade. E não apenas a dos consumidores. Aline Guerreiro deu aulas de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, em Lisboa e lembra que a questão ainda não é transversal. “Os cursos estão muito voltados para a estética. Os estores, por exemplo, devem ser postos sempre do lado interior” da casa para a aquecer. Mas não é isso que acontece porque professores e alunos ainda procuram a nota artística.” Até a sustentabilidade é ainda “um apontamento.”
UM SÉCULO DE VIRAGEM
O que acima se descreve não é a regra do século XXI. A partir de 2006 passou a ser obrigatório apresentar o certificado de eficiência energética, que impõe um isolamento eficiente aos novos edifícios ou aos reabilitados, nomeadamente nas janelas. Para estas novas construções, o desafio que hoje se coloca é o da confiança.
Aline Guerreiro considera que é preciso uma fiscalização rigorosa para que não haja edifícios que se dizem isolados mas não são. Já Carlos Mineiro Aires recorre algumas vezes à expressão “não vender gato por lebre”. Diz que é uma questão de justiça os consumidores serem protegidos, já que não têm conhecimentos técnicos para perceber as condições de uma casa. “Tem de haver uma ficha técnica assinada por todos os intervenientes a explicar o que foi feito e tem de ser entregue ao comprador. Se porventura houver alguém que minta, então aí é um caso de justiça”, defende o bastonário dos engenheiros.
O momento é de viragem e de oportunidades. Carlos Mineiro Aires lembra os esforços do Governo, nesta e na anterior legislaturas, que “têm de ser reconhecidos”, não só na inclusão do tema da eficiência energética no Plano de Recuperação e Resiliência como em vários programas pontuais, como o “Edifícios Mais Sustentáveis”, que em 2020 cobriu parte das despesas de melhoramento energético em casas anteriores a 2006. Estes programas são, porém, “ainda insuficientes”.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, que lançou um alerta e uma série de conselhos a quem passa frio em casa, pede que “a climatização necessária seja feita fundamentalmente com recurso a fontes de energia renováveis”. É que, além do peso na fatura dos consumidores e das infames estatísticas sobre um frio que mata, “o aquecimento ambiente ainda tem uma componente de poluição associada a vários níveis, conforme o tipo de equipamento utilizado”.
E são vários, elenca o dirigente: o gás natural, um combustível fóssil; sistemas elétricos, “que ainda têm alguma utilização de combustíveis fósseis na sua produção”; lenha nas lareiras, “que conduz à libertação de partículas para a atmosfera que são nocivas para o nosso sistema respiratório”.
Para os especialistas ouvidos pelo Expresso, a prioridade é reabilitar, reabilitar, reabilitar. É certo que “há casas em que não vale a pena investir um cêntimo”, como avança Carlos Mineiro Aires, mas “por princípio é pior destruir e fazer de novo do que remendar”, contrapõe Aline Guerreiro, a começar por isolar as fachadas, prédios inteiros, alterar as caixilharias.
Em qualquer caso, “estamos a falar de milhares de milhões de euros” e de alguns anos de reabilitação até que não haja mais ninguém a morrer de frio, como reforça Carlos Aires. “É o mínimo aceitável.”
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL