PONTO DE FUGA. Há pessoas que têm moto e não compreendem o que é a cultura das motos. Outras há que, não tendo moto, vivem como se tivessem nascido a acelerar. Na década de 80, uma marca de surf lançou para a rua uma daquelas frases que se tornam imortais: only a surfer knows the feeling – só um surfista conhece a sensação. Arrume-se a prancha e o fato, que desapareça o mar e dê lugar ao alcatrão. Venha o capacete e a moto, seja ela qual for. Há coisas que só alguns conhecem verdadeiramente – ainda que passem a vida toda a tentar explicar aos restantes. É assim no mar, é assim na estrada. E é assim com os livros
As imagens que ilustram este artigo resultam de vários anos de trabalho de Tiago Miranda, fotojornalista do Expresso. E essa viagem pelas pessoas que fazem das motos a sua vida, que culminou na publicação de um livro chamado “Ponto de Fuga”, resulta de um sonho que estava atrás da curva de uma mesa de um café em Lisboa. Foi lá que nasceu a ideia do Lisbon Motorcycle Film Fest, primeiro passo para divulgar a cultura das motos e de quem a vive realmente.
Fotografias de Tiago Miranda e Texto de Ricardo Marques
Fernando Ganhão
Moto e Saudade
Há quem vá de cavalo para burro. Fernando foi de moto para outra moto, e depois para carro. Campino na Companhia das Lezírias, vai longe o tempo dos invernos frios a apertar os ossos pendurados em cima da Famel Zundapp. Era o que havia. Veio depois outra moto, dada pela companhia, mais adequada a todos os terrenos – e a Zundapp passou para o filho. Depois voltou para ele, por uma ultrapassagem trágica, e lá está arrumada. Fernando está hoje reformado e de vez em quando ainda liga a moto para dar uma volta. “Agora tenho carro, é mais confortável”, diz. Fernando ainda tem moto, mas o filho não. Faleceu há quase vinte anos, num acidente de moto, numa curva em Benavente.
Giovanna Bessone
O passado em duas rodas
Não falta quem pense que a moto é coisa de gente nova. Mas a vida é cheia de curvas, e é a seguir a uma delas que está Giovanna Bessone. Nas últimas três décadas tornou-se uma espécie de figura lendária na zona de Paço de Arcos, uma garantia de que os dias corriam como era suposto. Andava de um lado para o outro numa scooter, uma avó em duas rodas. Uma vez, a polícia mandou-a parar e Giovanna ouviu o agente dizer-lhe que a licença que tinha, tão antiga como a moto, já não era válida. Não desistiu inscreveu-se e teve aulas de código e de condução. Voltou a estar dentro da lei e dentro da estrada, sempre em Paço de Arcos e Laveiras. Há coisa de dois anos, caiu e aleijou- se num braço. “Voltar a andar de moto é mais difícil agora. A destreza física já não é a mesma. E a memória também não.” Pelo meio, veio uma pandemia global que a manteve presa em casa. A moto é uma relíquia de família, agora são os netos que a conduzem. Giovanna, que nasceu em Roma, que viu cair as bombas e chegar os alemães na Segunda Guerra, que conheceu o marido, o escultor Numídico Bessone, nas Belas Artes, em Itália. Giovanna, que tem 91 anos.
Família Garcez
O eterno retorno
A moto que deu o mote está a sul, mas já não é a mesma embora não seja diferente. Pedro comprou-a em 1975, e foi nela que seguiu para a lua-de-mel. Graça ia à pendura, mas por pouco tempo. Num ápice, tinham os dois carta e tinham os dois moto. Vieram os filhos, mas as rodas não pararam. David, o mais velho, à pendura do pai; Marta, a mais nova, agarrada às costas da mãe. Quatro pelas estradas da Europa, com o tal bichinho a entrar aos poucos nos miúdos. David virou-se para o interior das motos, tanto que hoje as constrói de raiz. E gosta de Harleys. Todos gostam. E de vez em quando, quando a vida o permite, os filhos rumam a Tavira, ao encontro dos pais, ao encontro daquela moto que começou tudo, e que vai sendo mudada aos poucos. É uma BMW R50 que une a família Garcez. A história podia começar aqui. Era uma vez…
Ricardo Guerra
Vinte e dois, diga vinte e dois
Oficialmente, e para que fique registado, Ricardo Guerra tem 22 motos. Vinte e duas. Foi este o número a que chegou quando as contou pela última vez. Isso foi há quatro anos. “Estou mais calmo. Muito mais calmo. Para aí há seis meses que não compro uma moto”, assegura. Estamos no início do março de 2021. Na coleção de duas dezenas e duas unidades há um pouco de tudo. “Desde que tenha duas rodas, marcha”. A aventura começou há 28 anos. Tem 44, tinha 16. Passou um mês sem almoçar, às escondidas dos pais, para comprar uma moto capaz de ir para a terra na Serra de Carnaxide acelerar com os mais velhos. “Ao fim de dez minutos, estava o meu irmão a andar, todo contente, e vejo o carro da polícia atrás dele. Ele nem se apercebeu, tal era a barulheira que a moto fazia. Dez minutos e estamos parados a falar com o polícia.” A história resolveu-se e, ainda hoje, o rapaz e o polícia se cumprimentam quando se cruzam. Ricardo não parou. Acelerou , competiu em provas de velocidade. “É como pegar um touro pelos cornos e saber que ele te pode matar. Andar de moto é isto”. Não há sensação como essa. A antecipação, a velocidade, até depois de parar a moto. Viajar com os amigos, ter a liberdade de ir a qualquer lado. Nenhuma das minhas motos está na forma original. Mudei-as todas para ficaram como quero. São peças únicas e talvez por isso Ricardo diga que quando chega a qualquer lado, pára a mota e sai, a primeira coisa que faz ao afastar-se é olhar para a máquina. Só não lhe peçam para descrever essa sensação.
Zé Amaro
O homem da concentração
Bastava dizer que as motos são a vida de José Amaro. Casou-se – a palavra é dele – com uma KAWASAKI ZL 1000 há 35 anos. Foi a segunda moto da sua vida e é nela que anda todos os dias – ou sempre que consegue. Tem 69 anos e essa idade vezes muitos milhares de quilómetros nas pernas. Descobriu o mundo e, pelo caminho, perdeu amigos. “É o que mais custa, mas a vida é feita disto”. Correu a Europa toda, foi a Marrocos, e está já a sonhar com mais uma viagem a França e à Suíça. Mas as maiores viagens acontecem sem sair da cidade onde vive. Organiza a Concentração de Motos de Faro e anualmente recebe milhares de pessoas de todas as nacionalidades e culturas. Quando lhe pedem para explicar a quem não anda de moto o que é andar de moto, hesita, mas por pouco tempo. “É o encontro.”
Ricardo Oliveira
A moto enquanto conceito
São mais de 350 quilómetros da Pontinha, nos arredores de Lisboa, à Covilhã, cidade a meio caminho do ponto mais alto da Serra da Estrela. Uma vez, Ricardo Oliveira, pegou na bicicleta, saiu de casa e demorou três dias e nove horas a fazer a viagem. Na altura, eu e a bicicleta, juntos, pesávamos 100 quilos. “Cheguei lá de rastos… Não foi fácil”, recorda. Mas não se lembra de mais nada, porque instantes depois de chegar já tinha os olhos a mil à hora, de um lado para o outro, a saltar de uma moto para outra. Oitenta e uma horas a pedalar para se perder num mar de Harleys. “Se fosse preciso ia já outra vez”. Ricardo é um caso singular de uma pessoa que vive para a Harley Davidson mas que não tem uma Harley Davidson. Ou melhor, ele tem uma espécie de HD. A tal bicicleta que foi da Pontinha à Covilhã é uma verdadeira HD, com tudo aquilo a que tem direito. Começou a ser construída de raíz, em 2017, como o absolutamente indispensável: um quadro, duas rodas e um volante. “O meu sonho, desde miúdo, é ter uma HD, mas nunca tive dinheiro”, diz. Muitas pessoas vão fazendo o que podem para chegar ao sonho. Ricardo pegou no sonho e deu-lhe forma. A coisa começou com programa de televisão americano sobre carros e motos. “Adoro, adoro”. Em 2019, durante mais um encontro de HD (é desnecessário dizer que ele vai a todos), a bicicleta foi uma das protagonistas do vídeo do certame. “Fiquei tão feliz, avisei os meus amigos todos, fartei-me de partilhar aquilo”, confessa Ricardo, que é mecânico de autocarros. Com tantas rodas pelo meio, era natural que a vida o acabasse por apanhar numa curva, desprevenido. E ele nunca imaginou que fosse tão agradável. Há uns meses, um grupo de pessoas entrou em contacto com Ricardo. Sabia da história, da bicicleta, e da paixão. Juntaram-se e disseramlhe que, mal tirasse a carta de moto, tinham uma Harley Davidson para lhe entregar. “É uma Forty-Eight… Um sonho… eu nunca teria dinheiro para aquilo”, diz. Tem 30 anos e não há um dia em que saia de casa sem qualquer coisa da HD: um cinto, um lenço, qualquer coisa. Agora, falta pouco, muito pouco, para o sonho estacionar à porta. Mas até lá, Ricardo não vai ficar parado. Está prestes a estrear uma nova bicicleta, elétrica, e duas vezes por semana está a preparar-se para ser mecânico de motos. “O sonho é ser mecânico da HD”. A lista de sonhos é como algumas estradas: não tem fim.
Isabelle Faria
Quem sonha sempre anda
Às vezes, a pessoa anda toda a vida a correr para acabar no mesmo lugar. Atente-se no caso de Isabelle. O pai e os tios andavam todos de moto. Tanto que, à custa de acidentes, uns mais graves do que outros, tudo fizeram para que os filhos ficassem longe das máquinas. O que não quer dizer que tivessem sempre sucesso. Isabelle ainda era adolescente e morava em França, não muito longe de Paris, quando ia para todo o lado numa 50 cc. Depois veio estudar para Lisboa e perdeu o hábito. Tudo mudou quando o pai adoeceu e esteve internado. “Voltámos a falar de motos”. Era uma história antiga, mas cheia de coisas novas. Isto foi há dois anos, tinha Isabelle 45. “Aos 18 anos, tinha passado quinze dias em Viseu só para tirar a carta de carro e de moto. As aulas de condução do carro correram muito bem, fiz o exame e passei. Mas na moto nem por isso. Decidiram que eu ia a exame ao fim de três aulas, com uma moto enorme. Eu estranhei, pedi para ter mais aulas, mas disseram-me que não era possível. Portanto, lá fui e, claro, chumbei.” Isto era o que Isabelle sabia. O que descobriu, contado pelo pai no hospital, é que tinha sido ele a ligar para a escola e a pedir para lhe apressarem o exame. Sabia que ela ia chumbar. “Mantive-te segura estes anos todos. Agora estás por tua conta”, disse à filha. Isabelle foi em frente, prego a fundo, teve as aulas e tirou a carta no preciso dia em que o pai fez anos. “Foi a prenda dele.” Tem hoje 47 anos e uma Harley-Davidson Forty Eight 1200. Se a vir passar, está a caminho de uma viagem longa. Mais uma.
Zé Ferrari
O nome comanda a vida
Como se escreve o vermelho? Escrever a palavra é fácil, são três sílabas ver, me e lho – qualquer um consegue. O difícil é escrever a cor vermelha, fazê-la brilhar apenas com a luz das palavras. Zé Ferrari escolheu outro caminho. “Nasci com o espírito Ferrari. O que é isso? Fácil, a pessoa acorda, levanta-se e não sai de casa sem levar qualquer coisa da Ferrari. Depois repete.” É assim há 53 anos, porque quando nasceu já o pai andava às voltas com o vermelho e com o cavalo. Zé tem 17 motos, mas a que enche esta fotografia já não está no mundo dos vivos. Ao contrário do espírito Ferrari, a moto do Ferrari, com todas as características de um Ferrari, não se deu bem com as ruas de Benfica. O bicho era tão singular, imponente, colorido e barulhento que ninguém ficava indiferente. Toda a gente queria olhar, e a polícia olhava bastante. O problema é que a moto, a Ferrari, tinha sido adaptada a partir de uma Africa Twin – e esta declaração era tudo o que restava do original. “Levei mais de um ano a preparar a moto, com ajuda de um colega, mas estavam sempre a mandar-me parar e, há uns meses, decidi que já não valia a pena. Foram pouco mais de dois dias para a desmontar.” O sonho ficou, pintado em tons de vermelho, e embalado por viagens sem conta a Itália, dias perdidos a ver corridas. “Isto dá-me prazer”, diz. Não hesita em segundo e garante que ninguém em Portugal sabe tanto sobre a Ferrari como ele. “Tenho tudo o que é importante e histórico”, incluindo vários bocados de pistas míticas do desporto com motor. Também tem um motor de um Ferrari a servir de mesa de jantar, e um emblema da Ferrari em tudo o que conduz. Ainda que não tenha nenhum carro da marca. De certo modo, Zé entrou na Ferrari com bilhete vitalício. E sabe-o melhor do que ninguém, ou não fosse fiscal da Carris.
Elizabete Carvalho, Betty
A irmã mais nova
Perelhal é terra antiga, daquelas com registos históricos que começam no século XIII. Tem uma igreja, duas capelas, dois cruzeiros e, guardada algures, uma Sachs que era do avô de Elizabete. Pode não andar muito, nem ter o brilho das motos novas, mas tem memórias. Elizabete cresceu a ver os irmãos mais velhos e o pai a andar de moto, e aos 12 anos já acelerava numa Casal 2. A seguir, herdou a DT do irmão. “Com as minhas amigas era assim, quem tinha irmãos mais velhos andava de DT. As outras andavam de scooter”, lembra, ao mesmo tempo que o filho a tenta ultrapassar na chamada telefónica. O bebé tem nove meses e Elizabete, neste momento, não tem moto. Não é grande problema, pois no seu grupo de amigos há quem tenha para usar e emprestar. É o caso da Ducati na foto. Aliás, quando disse aos amigos que sabia andar de moto, ficaram um pouco espantados. Passou-lhes. O que não passa a Isabel é a ideia de ter a sua própria moto. Uma BMW, uma Ducati… “Sem moto não vou ficar”, garante, ao mesmo tempo que arruma a certeza na lista de coisas a fazer no futuro.
EXPRESSO – FICHA TÉCNICA
Fotografia Tiago Miranda
Texto Ricardo Marques
Webdesign João Melancia
Webdevolpment João Melancia e Maria Romero
Coordenação Tiago Pereira Santos
Direção João Vieira Pereira
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso