“Júlia” tinha um conflito com o senhorio e enfrentava um processo de despejo. “Manuel” precisava de tratar da nacionalidade portuguesa. “Marina” era interveniente num processo no Tribunal do Trabalho. “Odete” contestava uma contraordenação por violação da lei do ruído. O talho do “Figueiredo” estava em fase de liquidação. Todos precisavam de serviços de advocacia.
Todos recorreram ao mesmo “advogado”, um falso advogado, e todos foram vítimas de burla. Os nomes dos lesados são fictícios. As situações descritas e os prejuízos causados são bem reais.
Tinha cédula profissional válida mas pertencia a… outra
Carlos C. era licenciado em Recursos Humanos mas nunca estudou Direito. Chegou a trabalhar como caixa num supermercado e foi funcionário administrativo num banco. Desempregado há 4 anos, apresentou-se como “advogado”, angariou “clientes”, assinou “procurações” e cobrou “honorários”. Para enganar as vítimas, usava o número de uma cédula profissional ativa na Ordem dos Advogados mas pertencente a outra pessoa, uma advogada com escritório no centro da cidade.
Era um burlão e nunca fez nada para resolver os assuntos que lhe eram confiados, tendo faltado a marcações em serviços públicos e até a audiências em tribunal. Entre setembro de 2018 e maio de 2019, diz o Tribunal da Relação de Lisboa, a “atividade ilícita apurada é a única a que o arguido se dedica”.
O burlão lesou as vítimas em 14.537 €… mas isso não é o pior
O falso advogado pedia, por exemplo, 250 euros para tratar do cartão do cidadão, 350 euros para um título de residência ou 600 euros para tratar do pagamento de dívidas ao Estado. Estes valores eram solicitados a pessoas diferentes ou às mesmas, se lhe confiavam a resolução de mais do que um problema. Um casal de empresários foi lesado diretamente em quase 5 mil euros e uma comerciante perdeu cerca de 4 mil euros. No total, em 10 meses, burlou 16 pessoas num total de 14 mil e 537 euros. Foi o que o tribunal considerou provado.
O “Dr. Carlos Advogado”, designação que no WhatsApp aparecia associado a um número de telefone que já não existe, ficava simplesmente com o dinheiro das vítimas, a título de honorários e para regularizar dívidas ou pagar multas, o que nunca veio a acontecer.Agora, os prejuízos indiretos estão ainda por contabilizar.
Os lesados viram as dívidas passar para a fase de execução fiscal, os títulos de residência e de trabalho em Portugal a caducarem ou as ações de despejo a concretizarem-se sem que tivessem sido feitas quaisquer diligências para tentar travar os processos. O “modus operandi” resultou mas, a certa altura, houve queixas e a polícia apareceu em cena para fazer a detenção do burlão.
Pena suspensa, pena suspensa… pena de prisão efectiva
Condenado a 8 anos de prisão efectiva pelo cúmulo jurídico de 12 crimes de burla qualificada e 14 crimes de usurpação de funções, o arguido – garante o Tribunal da Relação de Lisboa – não mostrou arrependimento nem qualquer tipo de empatia para com as vítimas. E o recurso da defesa foi negado: os crimes foram assumidos parcialmente, o arguido agiu com intencionalidade e revelou “ausência de auto-crítica e auto-censura”, mostrando uma “personalidade irresponsável”.
Afinal, este falso advogado já tinha antecedentes criminais, mas ainda não conhecia o meio prisional. Carlos C. tinha sido condenado três vezes em tribunais da Área Metropolitana de Lisboa e, dessas três vezes, os juizes concederam-lhe pena suspensa: em 2014, foi por “um crime de tráfico de menor gravidade”; em 2016, por burla; e, em 2018, “usurpação de funções e falsificação de documento”. Três penas suspensas, três oportunidades perdidas. Neste último processo, de 2019, por burla qualificada e usurpação de funções, os juizes já não foram tão tolerantes e o arguido foi condenado a 8 anos de prisão efectiva. A decisão já transitou em julgado, ou seja, não há mais possibilidade de recurso.
O combate da Ordem dos Advogados à “procuradoria ilícita”
O presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, que acompanhou este processo, está satisfeito com o desfecho. Em declarações à SIC, João Massano considera que o caso “demonstra, de forma inequívoca, que vale a pena continuar a combater a procuradoria ilícita”, até porque foram menos de 2 anos “desde a denúncia dos factos até ao trânsito em julgado da decisão”. Mas a defesa dos atos próprios dos advogados e o combate ao “flagelo” da procuradoria ilícita vai mais além.
João Massano está preocupado com o reaparecimento de sociedades multidisciplinares para o “futuro da advocacia em Portugal” e não fica por aqui: “continuamos, dia a dia, a travar uma luta, sem precedentes, que se vem revelando de forma cada vez mais dissimulada, nas redes sociais, seja através de siglas comerciais, de empresas-fantasma e plataformas criadas para angariar clientela, sendo certo que diversas entidades públicas e privadas publicitam e praticam atos que são próprios dos advogados”.
Só no ano passado, no Conselho Regional de Lisboa, foram feitas 216 participações, abertos 70 processos de averiguação preliminar e 69 processos de procuradoria ilícita. Destas participações, 24 foram enviadas à Direção Geral do Consumidor. No balanço final de 2021, ficaram pendentes 252 processos de procuradoria ilícita em Lisboa. A nível nacional, os dados mais recentes da Comissão de Defesa dos Atos Próprios da Advocacia da Ordem dos Advogados são de 2020. Das 437 situações identificadas como procuradoria ilícita, perto de metade são da área do Conselho Regional de Lisboa. Uma tendência que se deverá manter. E desses casos, garante João Massano, “90% são empresas de consultadoria, gestão de condomínios, cobrança de dívidas, gabinetes de contabilidade, técnicos oficiais de contas, sociedades de mediação imobiliária e advogados com inscrição suspensa e ou cancelada”. Na prática, casos como o do “Dr. Carlos Advogado” são, afinal, escassos no campo desta batalha.
Como ver se um advogado tem cédula profissional ativa
Para saber se alguém que diz ser advogado é mesmo advogado ou se um advogado pode exercer a atividade profissional, há uma forma simples de o fazer através da Ordem dos Advogados, quer a nível regional quer nacional.
Embora não exista um atendimento telefónico específico para este fim, os funcionários poderão ajudar dentro do horário normal de expediente.
No site da Ordem, em www.oa.pt, basta percorrer a página principal até ao fim e fazer “Pesquisa de Advogados”. A busca faz-se pelo nome, morada do escritório, comarca ou pelo número de cédula profissional. As pesquisa permite escolher apenas um ou vários critérios e, assim, qualquer cidadão pode verificar se aquela pessoa é advogado ou advogada e se tem ou não cédula profissional ativa.
Mas atenção: caso algum advogado tenha sido condenado a perder a cédula profissional ou a suspender a atividade profissional, só aparece como “inativo” no site da Ordem depois do trânsito em julgado da sentença, o que – de recurso em recurso – pode demorar anos.
- Texto: SIC Notícias, televisão parceira do POSTAL