Era meio da manhã desta quinta-feira e a missão estava dada como concluída: 37 homens tinham sido resgatados a bordo de uma embarcação de madeira sobrelotada que se encontrava a 50 milhas (pouco mais de 90 quilómetros) da costa algarvia. O Serviços de Estrangeiros e Fronteiras adiantou em comunicado que são “alegadamente oriundos do Norte de África” mas ainda está a verificar todas as identidades. São agora 134 as pessoas que chegaram desta forma ao país. No entanto, a situação registada esta quinta-feira tem uma nuance que a torna diferente de todas as outras.
“O que aconteceu não foi uma interceção de uma embarcação por entrada ilegal no território nacional, foi o cumprimento de uma obrigação internacional: resgatar quem está em perigo”, explica Vasco Becker-Weinberg, especialista em direito do mar e líder de equipa da linha de investigação “Migração & Direito do Mar”, da Refugee Clinic da NOVA School of Law. “Não houve entrada ilegal, as pessoas não desembarcaram em terra, não entraram em águas territoriais e por isso não entraram em território português. Assim, estamos perante uma obrigação internacional de resgate e tem de ser dado a estas pessoas um tratamento humanitário.”
E é precisamente devido à forma como chegaram que estes 37 homens não vão ser presentes a tribunal nem correm o risco de ficar instalados num estabelecimento prisional como já aconteceu anteriormente.
“No caso da entrada ilegal está em causa uma ilicitude e por isso é que as pessoas são levadas perante o juiz”, clarifica Vasco Becker-Weinberg, que acrescenta ainda que agora “é importante” levar a cabo a avaliação se as pessoas em causa se tratam de migrantes “que procuram uma vida melhor e melhores condições financeiras” ou refugiados “que fogem de países em conflito e perseguições”. “Estão à guarda do Estado português e o processo vai correr.”
A etapa seguinte passa por estas pessoas pedirem ou não proteção internacional. “Não me parece que alguém que se mete no mar, arrisca a vida e chega a Portugal vá escolher não fazer o pedido. Parece-me improvável, mesmo que tenham outro destino que não Portugal.”
Todos os 37 homens – e aqui já tudo é igual aos desembarques anteriores – têm o direito de pedir asilo a Portugal. Cabe depois às autoridades nacionais avaliarem se as pessoas se enquadram nesse estudo. Entre os 97 migrantes que entraram anteriormente por esta via no país, apenas um recebeu o estatuto: era menor de idade.
TENDAS CLIMATIZADAS NO PORTO
O SEF confirma que está neste momento a cumprir todas as diligências para confirmar as identidades destes homens. Estão a ser criadas fichas para cada um deles, assim como estão a ser recolhidos os dados biométricos e analisados os pertences que traziam a bordo. Para já, ainda se desconhece se algum deles tem documentos.
Ao que o Expresso conseguiu apurar, e também devido à excecionalidade da situação, foram erguidas duas tendas climatizadas no cais da Marinha, em Faro, onde os homens devem passar a noite. A resposta tem capacidade para “oferecer condições dignas por pelo menos 48 horas”, assegurou fonte próxima do processo.
O que acontece a seguir e para onde vão ser levados estes homens ainda não se sabe. O caso está nas mãos do Ministério Público de Portimão.
Também contactada pelo Expresso, a Marinha remeteu todos os esclarecimentos para o SEF e o Ministério Público, explicando que após o resgate o caso já não é da sua responsabilidade. “Fizemos o resgate em alto mar, a corveta António Enes chegou ao local bem cedo e fizemos o resgate. Para a Marinha, salvar vidas sobrepõe-se a tudo”, disse o porta-voz.
A embarcação de madeira com sete metros estava entre Vila Real de Santo António e Tavira. A operação foi desencadeada após um navio da marinha mercante, que navegava naquela área, ter detetado o barco e alertado o Centro de Coordenação de Busca e Salvamento de Lisboa ao final do dia desta quarta-feira. Aparentemente, refere a Marinha, não há menores no grupo resgatado nem qualquer situação “a inspirar cuidados de maior”. “Um dos homens queixa-se de um pé” mas no geral “parecem estar todos bem”.
44 PESSOAS DESAPARECIDAS
Foi em dezembro de 2019 que começaram os desembarques na costa algarvia. O perfil das pessoas que vêm a bordo é sempre o mesmo: homem, marroquino, viaja sozinho e é maior de idade.
De acordo com os dados do SEF, e entre as 97 pessoas que chegaram anteriormente, 33 permanecem em território nacional: uns já manifestaram vontade de legalizar a sua situação através de um contrato de trabalho (10), outros estão à espera dos documentos necessários para “o seu afastamento de território nacional” (6), um encontra-se em prisão preventiva e os restantes aguardam pela decisão do seu pedido de proteção internacional.
Há ainda 11 pessoas que foram para outros países da União Europeia, oito que foram enviados pelo SEF para Marrocos e uma pessoa que regressou voluntariamente a solo marroquino.
Os restantes 44 estão “em paradeiro desconhecido com medida cautelar de pedido de paradeiro”.
Ao Expresso, em 2019, pouco depois dos primeiros desembarques, as autoridades portuguesas defendiam que era “improvável” que Portugal se tornasse uma rota migratória, desde logo pela distância e pela travessia – que é “mais perigosa por estar sujeita a uma ondulação mais forte”. No ano seguinte, o porta-voz da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM) admitia que talvez estivesse a surgir uma nova rota: “Pode ser um indicador numa fase bastante inicial”. E continuava: “Os números são muito pequenos e é muito cedo para dizer se esta é uma nova ou significante tendência. Como isto se vai desenvolver no futuro depende de vários fatores, incluindo a forma como as autoridades [de Marrocos e Portugal] vão reagir”.
Olhando para os exemplos das 97 pessoas que chegaram anteriormente desta forma a Portugal, as embarcações saíram de El Jadida, em Marrocos, em direção ao Algarve, percorrendo 430 quilómetros de mar picado e com correntes mais fortes do que noutros pontos de travessia. Cada pessoa paga €500 por um lugar na embarcação, que ainda assim é menos do que os preços exigidos noutras travessias entre o Mediterrâneo e a Europa, que ultrapassam várias vezes os €1000. Para sair da Líbia, por exemplo, há relatos de pessoas que pagam €5000.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL