Em 2020, o desporto, habituado aos cânticos e aplausos dos adeptos, transformou-se em silêncio para que fosse possível prosseguir com os campeonatos, numa altura em que a pandemia causada pela covid-19 começou a ameaçar a saúde de todos. Antes disso, outro problema obrigava ao silêncio. E não apenas porque os adeptos não podiam marcar presença nas competições agendadas, mas sim porque nem tinham competições para assistir.
Ainda no mesmo ano, mas antes do coronavírus se espalhar pelo mundo, o fumo e má qualidade do ar obrigaram à suspensão de diversos treinos do Open da Austrália. A tenista Dalila Jakupovic chegou mesmo a abandonar um jogo por estar com dificuldades em respirar. Tudo isto devido aos incêndios que afetaram o país.
No ano anterior, pela primeira vez na história da competição, três jogos do Mundial de râguebi foram cancelados: Nova Zelândia-Itália, Inglaterra-França e Namíbia-Canadá. O motivo foi a passagem do tufão Hagibis pelo Japão, que obrigou à evacuação da cidade que iria receber o evento, onde foram registados deslizamentos de terra e inundações.
Mas a revolta da natureza não é nova e as consequências estão já à vista de todos.
“Tenho medo que isto seja uma modalidade em risco de extinção”, confessa o esquiador Manuel Ramos à Tribuna Expresso. “Nós precisamos de neve para esquiar e se esta acaba ficaremos limitados a espaços indoor, que vai havendo já em alguns sítios, mas que não é nem de longe nem de perto a mesma coisa de podermos desfrutar das montanhas”.
O desporto não escapou ao impacto das alterações climáticas e as modalidades de inverno têm sido particularmente afetadas quando se trata do aquecimento global. Em Portugal, as condições para a prática de esqui não são as ideais, mas a situação tem piorado de ano para ano.
“Em Portugal, embora as condições que há não sejam as melhores devido ao relevo e tudo mais, era regular haver neve na Serra da Estrela e neste momento são muito poucos dias por ano em que a estância de esqui abre. Não há neve para isso”, diz Ramos.
O problema é ainda mais evidente no destino que até aqui dava total segurança aos atletas de que iriam ter neve para treinar: “Nos glaciares nos Alpes, que estão cada vez mais reduzidos. Há glaciares que tinham as pistas de esqui abertas todo o ano e neste momento isso não está a ser possível porque os glaciares estão em muito mau estado”, afirma o atleta.
Estas questões obrigam os atletas a fazer alterações nas rotinas. No caso de Manuel Ramos, em particular no que diz respeito ao planeamento dos treinos de verão. Enquanto antes as datas em que estariam em determinado local eram previamente estipuladas, atualmente isso é impossível “porque há uma data de abertura e uma de encerramento definidas [das estâncias], eles vão-se adaptando às condições que têm”.
Mas pior do que alterar o calendário de treinos, é ter que alterar o de competições.
“Também há provas, acontece em quase todas as temporadas, que são canceladas por causa da falta de neve. Isso é a maneira que mais afeta. Este ano por acaso ainda não aconteceu. No ano passado não sei dizer as datas, porque entre a falta de neve e a pandemia houve muitas provas a ser canceladas”, afirma.
Impossibilitados de competir
O esqui não é a única modalidade a sofrer com o problema das alterações climáticas. Aumento do nível do mar, mudanças de estações ou contaminação da água são alguns dos problemas que todos os dias ameaçam os oceanos e as praias. E, em consequência, desportos como o surf ou o bodyboard.
Para Joana Schenker, a primeira campeã mundial de bodyboard portuguesa, um dos grandes problemas prende-se com as bancadas de areia que, no seu caso, são “quase a coisa mais importante”, uma vez que acabam por ditar se as ondas serão boas ou más.
“Quando as bancadas de areia estão boas, temos ondas boas praticamente todos os dias, e quando as bancadas ainda não se formaram bem, mesmo que tenhamos bom vento e boa ondulação, acabamos por não ter ondas boas”, explica Schenker à Tribuna Expresso.
O problema é que a formação dessas bancadas de areia tem sido cada vez mais tardia.
“O que tenho vindo a sentir é que temos vindo a ter menos ondulação grande, principalmente no final do verão, o que faz com que as praias tenham muito mais areia do que é normal, porque toda esta areia deveria estar mais para dentro do mar para fazer bancadas de areia onde quebram as ondas. Isto tem vindo a diminuir cada vez mais”, diz, realçando que em 2021, assim como no ano anterior, encontrou em Faro praias completamente areadas.
Atrasadas estão também as estações do ano, o que acaba por contribuir para o mesmo problema.
“Se calhar em setembro ou outubro já íamos estar a apanhar outro tipo de ondas, ondas mais de outono, com mais força, melhor vento. Agora só começamos a ter esse tipo de ondas lá para novembro ou dezembro. Nota-se que realmente há uma mudança”, explica o surfista Miguel Blanco à Tribuna Expresso.
Mas não fica por aqui: “Antigamente uma previsão do tempo, vento ou ondas era muito mais precisa do que é nos dias de hoje. Isso sem dúvida que se deve a todas as alterações que estão a acontecer. Na temperatura do ar, do mar, na subida do nível da água… são inúmeros fatores que estão a contribuir para esta crise atual e nós, no surf, sentimos essas alterações porque é um desporto diretamente relacionado com a natureza. E é a natureza que manda”, diz Blanco.

E se estes problemas acabam por ser mais notados pelos atletas que frequentam as praias ou pelas pessoas que frequentemente se deslocam às mesmas, há um que lembra a toda a gente que esta é uma situação real. Como aconteceu no râguebi, no ténis ou a Manuel Ramos no esqui, também Joana Schenker e Miguel Blanco já viram competições serem canceladas por fenómenos não diretamente relacionados com desporto. Nos dois casos, por falta de qualidade da água.
“Está relacionado com a própria conexão do ser humano com o oceano, com a proteção do oceano”, começa por explicar Blanco. “Na praia de Matosinhos, a praia internacional do Porto, é realmente muito grave o que está ali a acontecer. Há uns anos que se tem vindo a praticar várias ações que não respeitam não só a natureza, como a população local ou as próprias escolas de surf.
O surfista fala de descargas provenientes de barcos, esgotos e detritos com origem na rua que acabam por chegar ao mar.
“Um conjunto de fatores que criou uma bactéria na água. Não só nos últimos anos já houve campeonatos em que se calhar quatro ou cinco atletas ficaram doentes por estarem a surfar numa água poluída e com uma bactéria, como também no ano passado [o campeonato] não foi feito em Matosinhos e tivemos que ir para a praia de Leça da Palmeira porque a água estava imprópria para banhistas”, conta o surfista, que na altura tentou saber mais sobre o problema junto da Associação Portuguesa do Ambiente (APA), mas relata não ter conseguido.
A Schenker aconteceu o mesmo: “Houve um campeonato, acho que foi em 2004, mas não tenho a certeza, um campeonato de seleções europeias nas Canárias, em que no dia final não se fez o campeonato porque um esgoto tinha desabado para dentro do mar e não havia condições para se fazer”.
Ainda que chegue ao mar pela mão humana, o transporte do lixo e a forma como termina depositado nas praias, tem origem, também, em causas naturais.
“Quando temos tempestades elas vêm muitas vezes mais de sul e essas tempestades com ondulações mais de sul trazem muito lixo e água suja, o que acaba por ter impacto na nossa praia. Nós temos praias que às vezes ficam completamente cheias de lixo. Isto é um dos problemas que o surf e o bodyboard, e todos os desportos aquáticos, vão começar a sentir mais, que é a poluição”, explica Schenker.

Incerteza no futuro
Quando fala sobre o tema das alterações climáticas, Blanco faz questão de realçar que fala de factos: “Há uns anos ainda nos questionávamos se realmente o aquecimento global eram factos e se o plástico no oceano era assim tão preocupante, hoje em dia são dados adquiridos”. Ainda assim, mantém o otimismo em relação ao futuro.
“Em risco não vamos estar porque vai existir sempre um oceano e vão sempre existir ondas”, diz, não descartando, por outro lado, a possibilidade de a qualidade do desporto poder estar em risco.
O que o deixa otimista é o facto de a própria modalidade estar a responder ao alerta e a fazer algumas alterações para contribuir para a solução e não para o problema.
“Acredito que o próprio desporto está a começar a respeitar um pouco mais. Antigamente num tour os surfistas tinham que viajar o mundo inteiro para fazer campeonatos, apanhar 150 voos num ano, hoje em dia a própria questão da qualificação já está um pouco diferente, está cada vez a ser mais equilibrada, mais sustentável”, diz.
Já Schenker teme o problema que pode vir a afetar, entre outras zonas, o sul de Portugal. É que a atleta é natural de Sagres e o Algarve é uma das zonas em que se prevê que a subida do nível das águas do mar seja um problema.
“As praias estão a ficar mais pequenas, isso quer dizer que o mar nos está a ganhar terreno. Mas, para ser sincera, ainda não senti o efeito negativo dentro da minha modalidade. Já reparo no fenómeno, e para os banhistas repara-se bastante, agora dentro do bodyboard ainda não senti”, diz.
Mas, olhando para o futuro, alerta: “Se calhar daqui a bastantes anos vai haver praias que já não são praias, por exemplo. Se calhar vai haver ondas que deixam de existir porque simplesmente o mar subiu tanto que essa onda já não quebra no mesmo sítio. Também podem vir a aparecer novas, mas acho que aquilo que se perde de certeza que vai ser maior do que aquilo que se vai ganhar”.
Conscientes de que têm uma responsabilidade acrescida em relação ao ambiente, que é, no fundo, o seu escritório, os atletas tentam fazer a sua parte, enquanto alertam para as mudanças que cada pessoa pode fazer no seu dia-a-dia: arranjar outras opções para as embalagens de plástico, repensar hábitos alimentares, reutilizar o máximo possível, optar por produtos locais, ter em conta o bem-estar da natureza, entre outros.
“É com estas pequenas coisas que todos juntos vamos fazer a diferença, tem que haver uma responsabilidade civil porque cada escolha que fazemos em relação à indústria é um voto e temos todos de nos unir e votar no mesmo, que é um mundo melhor”, conclui Blanco.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL