Teresa sai a correr porta fora. A temperatura dos últimos dias de outono ou as pedras no caminho de casa até ao portão não a impedem de estar descalça. É a mais nova dos quatro irmãos Saldanha-Pisco. Nos primeiros dias de regresso, tirava a roupa e andava de um lado para o outro em cuecas. São hábitos que com três anos ganhou ao viver num veleiro e atravessar a navegar meio mundo com a família ao longo de 400 dias. O hábito do pé descalço está em todos eles: na mãe Inês, no pai João e nos irmãos Alice, Manel e Francisco.
“Ó, Teresinha, cuidado. Vai calçar-te.” O pedido da mãe haveria de ser cumprido uns minutos depois da chegada do Expresso à casa onde os Saldanha-Pisco, conhecidos também como a Wind Family, estão a viver há umas semanas. Estão numa casa que não é a deles – essa continua alugada, uma decisão que tomaram para garantir rendimento enquanto iam dar a volta ao mundo de veleiro.
“Depois de um ano como o nosso, em que andamos sempre descalços e a viver de maneira simples, é difícil, sobretudo para a Teresinha que nos primeiros dias nem queria vestir roupa”, começa por explicar João, que é o pai e a bordo se torna o capitão. “A verdade é que até deixei de sentir que a nossa casa do Estoril era nossa, quando cheguei aqui a esta casa onde vamos ficar nos próximos meses e arrumei os produtos de higiene e casa de banho senti que era nossa. A nossa casa é onde estamos nós os seis e as nossas pequenas coisas”, acrescenta Inês.
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Pela primeira vez o encontro com a família não é ao pé do mar. Estão numa aldeia em Santarém, Almoster, e é por lá que planeiam ficar até ao começo do próximo ano. “Ficamos até à próxima temporada da nossa aventura, é assim que eu gosto de dizer”, diz Inês. E fala de temporadas porque a primeira parte da volta ao mundo está fechada. Em agosto de 2020 saíram de Portugal em direção à Madeira, passaram por Cabo Verde, atravessaram o Atlântico, chegaram à América do Sul, atracaram na Martinica, Bonaire, Colômbia, Panamá, San Blas, Costa Rica e Nicarágua. Foram com o objetivo de dar a volta ao mundo em família mas no verão sentiram que era o momento de voltar a casa por uns tempos, fazer uma pausa e perceber o que viajar a tempo inteiro estava a fazer à família.
“Adaptamo-nos muito bem a esta vida nómada mas sentimos que temos de vir a Portugal uma vez por ano recarregar baterias”, começa Inês. “Pelo João já estávamos a atravessar o Pacífico, ele leva tudo à frente.” Mas o compromisso desde o primeiro instante era que todos estivessem bem e Inês e a filha mais velha, Alice, acusaram a necessidade de ter mais algum conforto que a vida dentro de um veleiro não tem. “Percebemos que para nós resulta estar nove meses a viajar e regressar a Portugal três meses, por exemplo.”
No começo de 2022 o plano é retomar as viagens e, embora já tenham em mente para onde gostavam de ir, preferem não revelar para já. “Há ideias mas nada ainda fechado.” Sabem que o meio de transporte deve ser outro. O veleiro continua no Panamá, está em terra e vai ser pintado em breve. “Estava a precisar e, estando fora de água, não se estraga. Acaba por ser como uma casa nossa que temos ali”, refere João.
“No mar não há brincadeiras”
A casa onde os seis estão a viver é grande, há várias divisões e um jardim para correr, mas os miúdos estão todos numa sala no andar de cima. “Agora não se largam, querem estar sempre juntos”, comenta Inês. No dia em que chegaram dormiram os seis no mesmo quarto. “É o hábito, foi mais de um ano a vivermos todos juntos, 24 horas por dia, sete dias por semana num espaço pequeno.”
Ouvem-se ruídos de conversas cruzadas mas não se percebe o que dizem. São quase murmúrios de quem troca segredos e brincadeiras. “O Manel e o Francisco saíram daqui a implicar todos os dias um com o outro e hoje em dia estão muito ligados. Claro que têm as suas discussões mas é comovente ver a ligação.”
Alice, 11 anos, era o braço direito de Inês e estava muito presente nas tarefas de organização diária do barco; Manel, nove anos, era um segundo capitão que aprendeu tudo o que havia a aprender sobre barcos. “É incrível, ele sabe as ferramentas todas, vai com o pai arranjar o barco e conduzia melhor que eu o dingui”, diz Inês. Francisco, de cinco anos, tomava conta de Teresa quando os mais velhos precisavam de ajudar os pais. “Ficava com ela, contava-lhe histórias.”
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“Somos uma equipa quando estamos no mar. As crianças percebem as coisas desde que lhes expliquemos e ali tínhamos tempo para explicar tudo e estar com elas”, conta Inês. Tinham uma escala definida e cada um deles sabia o que tinha de fazer. Com um alerta verde tinham os quatro de se sentar na mesa da sala, com o alerta amarelo ativado cada um ia para os quartos e ficava à espera até ordem contrária. Por último, e o mais grave, o vermelho, em que todos tinham de ficar num dos quartos com Alice e não podiam sair para nada, nem para ir à casa de banho.
“Era a única regra que tínhamos e eles perceberam bem. No mar não há brincadeiras”, refere Inês. “Eles os quatro têm neste momento um instinto de sobrevivência, umas ganas e um espírito de equipa que tomara a muitas empresas terem nos seus funcionários. Os miúdos sabem lavar louça, roupa, aprenderam coisas completamente diferentes. O que eles fazem agora não faziam antes quando estávamos em casa.”
Voltar a ter uma cozinha fixa e que não balança ao ritmo do mar era um dos maiores desejos de Inês. “Ao fim de dois ou três dias a viver no barco percebi que aquilo que estávamos a viver já não era um sonho mas a realidade, quando começaram as nódoas negras, o limpar de vomitados de quatro crianças…” João interrompe: “Eu foi mais ao fim de dois ou três meses, quando já começamos a ficar fartos de limpar e arrumar o barco, até porque ter ordem num espaço tão pequeno é muito complicado”.
“A travessia mais difícil”
Foi já na reta final que apareceu o maior dos sustos: Francisco começou a vomitar e a ter diarreia. Os pais, com o apoio do médico que os acompanha à distância, chegaram à conclusão de que o filho mais novo teria bebido água de um tanque. Tomou os antibióticos necessários mas não passou. Dois dias depois, Francisco estava na mesma.
A Wind Family estava então na Nicarágua e tinham alugado uma casa. “Voltamos a ligar ao médico que pediu para fazermos um teste simples: pedir ao Francisco para andar e saltar. Ele já não conseguiu fazer nada”, recorda João. Foram de imediato para o centro de saúde, onde o menino foi assistido e o diagnóstico chegou: uma apendicite.
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Inês foi de ambulância com Francisco para um hospital em Manágua, capital do país, enquanto João ficou com os outros três filhos à espera de notícias. “Estávamos a 80 quilómetros da cidade mas aquele caminho leva algumas horas a fazer.” Pediram de imediato apoio à embaixada portuguesa na Nicarágua e duas horas após darem entrada no hospital Francisco estava a ser operado. “Esta foi a travessia mais difícil de todas”, acrescenta o pai.
“Ao contrário do que se possa pensar, as coisas até correram muito bem, desde logo a Nicarágua não é um país em guerra e é um Estado socialista, por isso até tem algumas infraestruturas, embora muito inferiores às nossas”, diz. “O que lhe aconteceu ali podia ter acontecido em Lisboa, nada teve que ver com o ambiente. É incrível que no mar não se fica doente, nenhum de nós ficou. Desde que tenhas boa alimentação é um ambiente muito saudável.” Quando o Expresso conheceu a família durante os preparativos, Inês mostrou os medicamentos que levava e os equipamentos de primeiros socorros. Pouco ou nada foi usado. “Acho que os únicos comprimidos fui eu que tomei, para a dor de cabeça”, diz Inês.
O plano contemplava dois ou três anos a viajar, com este novo modelo que encontraram pode até ser mais tempo. Alice, com 11 anos, que era uma das mais resistentes à mudança, já está cheia de vontade de partir outra vez. “Está sempre a perguntar se não vai acontecer mais nada, se estar em casa é só isto”, diz Inês.
Apesar do regresso, os quatro continuam no regime de ensino doméstico: de manhã, João estuda com os miúdos, depois a tarde é livre para explorar. Ao longo dos 400 dias, os Saldanha-Pisco viveram numa comunidade indígena em San Blas, passaram por protestos na Colômbia, atravessaram o Atlântico e só viram mar durante 15 dias. Viajaram de veleiro, autocarro e carro. Tiveram o mar como jardim de casa e os peixes e corais como vizinhos.
“Uma coisa é idealizar o que é viajar a tempo inteiro. E esse sonho é importantíssimo para ter a gana de o fazer. Quando se começa a viajar a tempo inteiro, o sonho torna-se realidade e a realidade é uma vida real. Há as mesmas coisas, os miúdos a chorar, dias em que não apetece ir ver museus… É viver a vida”, sublinha Inês. “Caramba, falar disto tudo até me dá vontade de voltar ao barco.”
FOTO PRINCIPAL: Nuno Botelho. Da esquerda para a direita: Teresa, Alice, Inês e João. À frente: Francisco e Manel
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL