A paisagem de sequeiro do barrocal algarvio, por onde se dispersaram figueiras, sobreiros e oliveiras, começou a mudar. De Sotavento a Barlavento, parte do tradicional mosaico de culturas e dos pomares de citrinos de regadio está a ser substituído por abacate e já há poços a secar.
A fruta de origem tropical dá-se bem no Algarve, a cujos aquíferos exauridos vai beber, e nos últimos 20 anos viu a área de plantação multiplicar-se por 10 (de 171 hectares em 2000 para 1815 ha em 2019). Só entre 2017 e 2019, a área de abacateiros quase triplicou (de 650 ha para 1815 ha) numa região que em 2019 não sabia se teria água suficiente para abastecer a população mais de um ano, devido à seca.
O Ministério da Agricultura desvaloriza a questão da escassez de água com o argumento de que “não há grande diferença nas necessidades hídricas entre os citrinos e os abacateiros” — com os abacates a ganharem na sede às laranjas, bebendo em média mais cerca de mil metros cúbicos por hectare por ano. O gabinete da ministra Maria do Céu Antunes prefere sublinhar “a evolução tecnológica na gestão da água nas novas explorações, que permitiu reduzir os consumos de água 56% desde 2002”.
Contudo, “em setembro de 2020 tínhamos uma situação preocupante nas albufeiras do Algarve e os aquíferos já davam sinais de estar esgotados, devido em parte à explosão do regadio no Algarve”, alerta Pedro Cunha Serra, um dos três especialistas que elaborou o mais recente estudo sobre a eficiência hídrica da região algarvia para a Agência Portuguesa do Ambiente. As projeções de redução da precipitação e de recarga dos aquíferos, na ordem dos 10% e 20%, e de um défice hídrico de 60 hectómetros cúbicos em 2050, levam Pedro Serra a reforçar a ideia: “A expansão do regadio deve merecer-nos alguma atenção. Por muitos que sejam os benefícios económicos, temos de olhar para os impactes sociais e ambientais.” O estudo aponta para um incremento de 28,7% na procura de água para rega no Algarve dentro de 30 anos.
1977 hectares é a área total de pomares de abacate em Portugal. No Algarve existem 568 explorações (1815 ha) e no Alentejo duas (162 ha)
A escassez de recursos hídricos numa região onde a procura de água para rega é cada vez maior tem sido sublinhada por várias organizações ecologistas, que apontam o dedo às autoridades pela falta de fiscalização.
558 MILHÕES DE LITROS/ANO
A plantação de abacate, que ocupa 128 hectares nas freguesias de Luz e Barão de São João, no concelho de Lagos, é um caso emblemático. O processo de avaliação de impacte ambiental só avançou por pressão dos ambientalistas, quando já estava tudo plantado com luz verde da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve (DRAPAlg).
A consulta pública do projeto (da Frutineves) terminou esta terça-feira e a Declaração de Impacte Ambiental (DIA) está por emitir. Porém, os abacateiros estão plantados, tendo sido afetadas áreas de Reserva Ecológica Nacional, alteradas linhas de água e autorizado um sistema de rega que permite captar cerca de 558 milhões de litros de água por ano.
Nos pareceres que entregaram, as associações Regenerarte, Zero e Plataforma Água Sustentável apelam ao chumbo do projeto que consideram “insustentável”, por exaurir os níveis de água do sistema aquífero e contaminar as massas de água com fertilizantes e pesticidas. Os ambientalistas apontam “falta de rigor técnico” no estudo, exigem ver reparados os valores lesados e querem medidas que travem “o alastrar da impunidade” com que estes projetos agrícolas têm surgido.
Neste caso, as ações de fiscalização e uma ordem de embargo não travaram o promotor que, segundo a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR), “pagou voluntariamente uma multa de €12.255 por violação da legislação da REN”. O projeto está “em fase de apreciação instrutória” e a CCDR não sabe quando será emitida a declaração final.
Já o Ministério da Agricultura alega que “todas as obrigações legais estão a ser cumpridas”. Quanto às incongruências da aposta nas culturas intensivas em Portugal face ao Pacto Ecológico Europeu, argumenta que “o cumprimento dos compromissos europeus é claro e inequívoco”, e que “a sustentabilidade não depende apenas da espécie ou variedade cultivada, mas sim das práticas e sistemas de produção”.Mais de metade das 8 mil toneladas de abacate produzidas em Portugal foi exportada em 2020 (€10,2 milhões). O Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve aponta para uma redução de 80% das reservas hídricas da região no final do século.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso