Antes era necessário preencher papelada para fazer um novo cartão e um contrato de crédito junto de uma instituição financeira se quiséssemos pagar compras em prestações, geralmente de produtos mais caros, como móveis ou eletrodomésticos, mas entretanto o pagamento em prestações chegou a objetos mais prosaicos como peças de roupa, bilhetes para espectáculos, enfim, qualquer quantia que dê para ser dividida em prestações.
O modelo “buy now, pay later” (BNPL), ou “compre agora e pague mais tarde”, numa tradução literal, chegou em força aos mercados através de fintechs (empresas de serviços financeiros digitais) como a sueca Klarna (a segunda maior fintech do mundo, avaliada em 27 mil milhões de euros, segundo a Forbes) e ganhou expressão durante a pandemia.
O BNPL não é novo e até há uma fintech portuguesa que baseia o seu modelo de negócio na possibilidade de parcelar compras. Porém, o modelo da portuguesa Parcela Já foi concebido ao contrário, em 2017, ano em que chegou ao mercado, fornecendo um terminal semelhante aos do Multibanco junto dos retalhistas aderentes, retalhistas esses que pagam uma comissão à empresa por cada compra fraccionada.
Já as grandes empresas do BNPL, como a Klarna, têm aplicações e é com base nestas que fracionam os pagamentos (em três ou quatro vezes, com débitos a cada duas semanas) ou que os diferem a 30 dias. O modelo destes players, porém, é semelhante ao da Parcela Já, com a maior parte das receitas a provir das comissões cobradas aos retalhistas, apesar de também oferecerem modalidades de crédito tradicionais, com prazos mais alargados e com pagamento de juros.
A pandemia fez com que estas modalidades começassem a ganhar uma tração que nunca tiveram antes, graças ao fecho das lojas físicas e à migração em massa para o comércio eletrónico, com as lojas online a disponibilizarem esta modalidade no momento do pagamento das compras.
Segundo a CB Insights, as gerações X (ou millennials) e Z são as que mais recorrem a estas plataformas. São maioritariamente jovens com menos de 30 anos quem usa estas possibilidades de pagamento, uma faixa etária sem acesso ao crédito tradicional e muitas vezes sem cartões de crédito, realça a consultora.
Segundo dados do regulador do mercado de crédito do Reino Unido citado pelo jornal “Guardian”, desde o início da pandemia, o uso de pagamentos BNPL mais do que quadruplicou junto dos britânicos, atingindo os 2,7 mil milhões de libras, ou 3,7 mil milhões de euros, com 5 milhões de utilizadores a optarem por pagar as suas compras em prestações.
E é por isso que o regulador recomenda que o governo britânico regule “urgentemente” o setor sob pena de piorar a situação de dívida de muitos consumidores no país.
Um estudo da revista Which? – um equivalente britânico da revista DECO Proteste – mostra que, entre 2000 consumidores inquiridos, 24% destes disse que gastou mais dinheiro do que o inicialmente pretendido devido às facilidades de pagamento online de BNPL.
E 41% dos utilizadores mostrou desconhecer que, se falhasse um pagamento, a cobrança passaria para uma agência de recuperação de dívida, com impacto negativo no registo de crédito.
O mercado é promissor, de tal forma que em 2025 poderá alcançar o bilião de dólares (860 mil milhões de euros) globalmente em volume bruto anual de compras, segundo a consultora CB Insights, e pode significar receitas na ordem dos 950 milhões de euros a nível global.
É, também, promissor, mas de uma forma perversa, para quem depende do crédito para viver: pode-se pagar em prestações a partir de montantes reduzidos e não é necessário passar pelo crivo das análises de crédito (ou da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, a conhecida ‘lista negra’ onde figura o nome de quem falha prestações) para ver o fracionamento aprovado.
INVESTIR NUMA LICENÇA BANCÁRIA SAI CARO
“A Klarna é um banco. Licença bancária é relevante porque podem ter acesso a outros serviços como o crédito ao consumo”, nota Miguel Quintas, fundador e diretor-geral da Parcela Já. “Nós estamos regulados noutra perspetiva, não de banco, infelizmente. O investimento para uma licença bancária é de alguns milhões de euros e não temos essa dimensão”, lamenta.
A Parcela Já está atualmente sediada na Polónia, país que substituiu Portugal como razão de ser da empresa, apesar de a atividade comercial se manter no nosso país. “A Polónia é um mercado quatro vezes maior, onde as pessoas estão mais abertas à inovação”, justifica.
Porém, estes planos de expansão foram travados pela Covid-19, com o fecho da torneira no mercado português. “No período de pandemia as lojas fecharam e nós trabalhamos nas lojas físicas. Somos o único modelo que eu conheço que existe num ponto de venda com um terminal”, diz Miguel, “sempre no modelo offline“. Os 360 pontos de venda da Parcela Já em Portugal ficaram subitamente adormecidos e impossibilitados de faturar.
Do Banco de Portugal vem um alerta. “Embora [os BNPL] sejam apresentados como produtos de crédito sem custos para os consumidores, temos conhecimento de que, em vários países onde os BNPL estão mais disseminados, nomeadamente países anglo-saxónicos, têm sido suscitados problemas relacionados com a proteção dos interesses do consumidor e situações de sobre-endividamento”, respondeu o Banco de Portugal (BdP) em resposta às questões colocadas pelo Expresso.
CUSTOS MUITO ELEVADOS EM CASO DE INCUMPRIMENTO
“Em concreto, verifica-se que estes produtos têm associados custos muito elevados em caso de incumprimento do plano de reembolso e que, muitas vezes, não são apresentados de forma transparente”, alerta o banco central português, aludindo às penalizações em que os consumidores incorrem no caso de falharem as prestações nas datas inicialmente acordadas, segundo o gabinete de comunicação da entidade liderada por Mário Centeno.
E o BdP recorda que “em Portugal as entidades que intervêm no processo de concessão de crédito, sejam mutuantes ou intermediários de crédito, estão sujeitas a um processo de autorização e registo junto do Banco de Portugal (…) em suma, uma entidade que deseje comercializar este produto de crédito terá de estar no perímetro da supervisão do Banco de Portugal e de cumprir o quadro normativo aplicável ao crédito aos consumidores e/ou ao regime dos intermediários de crédito, designadamente o limite de taxas máximas aplicável a estes contratos”.
A diretiva europeia de crédito ao consumo, que data de 2008, vai ser alvo de revisão com propostas que, se aprovadas, poderão limitar os juros que podem ser cobrados e incluir os créditos abaixo dos 200 euros no seu enquadramento – o que abrangerá as BNPL.
Contactada pelo Expresso, fonte da Klarna recusou comentar uma eventual entrada do banco no nosso país, mas ressalva que a empresa quer levar os seus serviços “a todo o mundo”. Enquanto isso, em Espanha, mercado mais relevante do que o nosso, a fintech sueca já conta com 860 mil clientes, o número mais recente divulgado pela empresa.
Já outra gigante do BNPL, a Afterpay (adquirida recentemente pela Square, de Jack Dorsey, fundador do Twitter) diz ao Expresso que ainda não tem data para entrar em Portugal. “Apesar de estarmos empolgados com o potencial do mercado português, não anunciámos uma data específica para lançar a nossa plataforma em Portugal”, refere a empresa.
A Afterpay, também presente no país vizinho, exige acordo com os retalhistas, à semelhança da portuguesa Parcela Já, e requer, do lado dos clientes, a aplicação.
Notícia exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso