Recomenda-se vivamente este livro da Dom Quixote que, curiosamente, foi publicado com uma requintada edição de capa dura, o que não é apanágio usual da editora (a não ser em edições especiais de algumas das mais recentes obras de António Lobo Antunes), além do uso da cor dourada sobre um fundo negro.
Amor Towles nasceu em Boston, formou-se em Yale e o seu primeiro romance, publicado em 2011, foi considerado como um dos melhores livros do ano pelo Wall Street Journal, traduzido para mais de 15 línguas e foram comprados os direitos de adaptação ao cinema. Este segundo romance, publicado em 2016, permaneceu 40 semanas no top de vendas do New York Times. Considerado o melhor livro do ano por diversas publicações e com os direitos de adaptação à televisão comprados em 2017, percebe-se o furor que o livro tem provocado. O escritor trabalhou durante 20 anos como investidor e dedica-se agora exclusivamente à escrita.
No dia 21 de Junho de 1922, o Conde Aleksandr Ilitch Rostov comparece no Kremlin perante a Comissão de Emergência do Comissariado do Povo para os Assuntos Internos, como que acusado de viver luxuosamente em tempos de mudança, onde a «classe ociosa» já não tem lugar nem um papel útil à sociedade. Perante o sonante nome desta personagem, somos transportados para as páginas dos livros de Tolstoi ou Dostoiévski, contudo, o que predomina desde as primeiras páginas não é uma alma torturada pela época, mas sim uma alma livre, espirituosa, irreverente (ou não se sentisse dono do mundo onde vive) e que vive de forma mais ou menos diletante no luxuoso Hotel Metropol, com hora marcada todas as semanas no barbeiro, tendo prioridade perante quem já lá está, e tomando as suas refeições no restaurante Boiarski, onde o cozinheiro se permite indignar perante a capacidade do Conde conseguir detectar quais os ingredientes pobres que têm de ser utilizados como substitutos numa boa receita em tempos de carestia e de frugalidade.
Há uma passagem que retrata bem o espírito desta leitura, como um libelo contra os tempos que se vivem:
«É bem verdade que um homem pode sentir-se completamente desfasado do seu tempo. Um homem pode ter nascido numa cidade famosa pela sua cultura idiossincrática e, no entanto, não compreender minimamente os hábitos, modas e ideias que exaltam essa cidade aos olhos do mundo. Avança pela vida fora, olhando à sua volta num estado de desconcerto, sem compreender as tendências, nem as aspirações dos seus pares.» (p. 107)
O humor e a ironia são claramente actuais: «embora os duelos tenham surgido como resposta aos crimes graves – deslealdade, traição e adultério -, em 1900 já tinham descido as escadas da razão em bicos dos pés e eram travados por causa da inclinação de um chapéu, da duração de um olhar ou da posição de uma vírgula.» (p. 60)
O que não belisca o prazer da leitura nem diminui a perícia do autor no reviver e reconstruir de uma época. Aliás, as próprias notas do autor que surgem em rodapé são feitas na primeira pessoa do plural, como um “nós, os russos” que interage directamente com o leitor a partir do período retratado no livro. Esta é uma época dourada que está irrevogavelmente no seu ocaso e fazem do Conde Aleksandr um último sobrevivente. Ou talvez ainda haja surpresas?
O que é certo é que este nosso herói, mesmo quando se vê forçado a viver o resto da sua vida no hotel, não esmorece na compostura de um digno cavalheiro nem perde o sentido de humor ou o gosto pela vida nos gestos e acções mais simples. A intriga tem alguns saltos narrativos que nos fazem acompanhar a sua vida no Hotel Metropol primeiro como um solteiro bon vivant e depois como pai adoptivo da filha de uma jovem com quem travou amizade quando ela própria ainda era criança.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Abril)