Durante as festividades do Natal e Ano Novo famílias e amigos reúnem-se aproveitando para “pôr a escrita em dia”. Pergunta-se pelos filhos, pelos netos, todos querem saber como lhes corre a vida. E se a vida corre bem, é um prazer ir a estas reuniões familiares dar as boas novas. Ficamos então a saber que o primo sicrano tem um emprego fabuloso, que o primo beltrano foi promovido e vai tratar da sua reforma num sítio fantástico, e que a sempre bem sucedida prima encontrou agora um pretendente à sua altura.
Se as coisas correm mal, o desejo é de que esta época infernal acabe depressa! Talvez o lar tenha ficado destroçado, ou a saúde escasseie, ou a situação profissional vá de mal a pior! Não se quer ser recordado da situação difícil que se atravessa, e menos ainda suster os olhares de pena ou de incredulidade que podem surgir.
O desejo de sucesso, de realização profissional, agoniza a vida de tanta gente que talvez mereça que nos detenhamos a reflectir sobre este assunto.
Como seriam os Natais de Van Gogh? Antes de se tornar pintor, o jovem Vincent nascido em 1853 numa família de posição social elevada, foi vendedor de arte tendo tido oportunidade de viajar bastante e de conhecer bem a produção artística do seu tempo. Começa a pintar em 1881 e muda-se para Paris em 1886 onde se relaciona com eminentes artistas da época, entre eles Paul Gauguin, Émile Bernard ou Henri de Toulouse-Lautrec; aliás, chega a expôr ao lado destes dois últimos. Gauguin, por seu lado, chegará a habitar com Van Gogh na Casa Amarela em Arles e a pintar um retrato de Vincent: “O pintor de girassóis” em 1888. O seu irmão mais novo, Theo, bem posicionado no mercado da arte, proporcionou-lhe diversos contactos e apoiou-o financeiramente durante toda a vida.
Apesar de se encontrar num meio favorável, Vincent Van Gogh nunca vendeu um quadro! O seu desespero levou-o a cortar parte da orelha esquerda e, finalmente, a cometer suicídio apontando uma arma contra o peito em 1890. Foi considerado pelos seus contemporâneos um louco e um fracassado. Um século depois o seu quadro Retrato de Dr. Gachet, entra na lista dos 10 quadros mais caros de sempre, tendo sido vendido por 148,3 milhões de dólares. Foi adquirido pelo empresário japonês Ryoei Sato em 1990.
Como seriam os natais de Johann Sebastian Bach? Extremamente musicais, certamente. O compositor, nascido em 1685 e falecido em 1750, alcançou um lugar de destaque na Alemanha de então tendo ocupado o cargo de Kantor da Igreja de São Tomás e Director Musical da cidade de Leipzig. O seu virtuosismo no cravo foi amplamente reconhecido, bem como a sua excelência como maestro, cantor e violinista. Contudo, o grande pai Bach nunca obteve reconhecimento como compositor. É algo difícil de conceber! Hoje em dia todas as escolas do ensino especializado da música têm como obrigatórias obras de Bach - o grande mestre do contra-ponto e da arte da fuga - por muitos considerados o maior compositor da época barroca. No entanto, as suas obras obtiveram um êxito muito limitado em vida e foram completamente esquecidas após a sua morte. Mais uma vez foi necessário que passasse um século! Foi um outro compositor, Felix Mendelssohn, quem no inicio do Séc. XIX deu a obra de Bach a conhecer.
Porém, quanto tempo é necessário para avaliar justamente uma obra de arte? Em ambos os exemplos foi necessário muito mais tempo do que aquele de que dispuseram os seus criadores.
Podemos apreciar o quanto a vida foi injusta para com estes dois génios. Embora exista uma grande diferença entre ambos: Bach desfrutou de empregos bem remunerados, que lhe permitiram sustentar uma extensa família e ainda ter tempo para se dedicar a compor. Van Gogh viveu em condições muito precárias, não obteve qualquer retorno financeiro da sua actividade de pintor; valeu-lhe a enorme caridade do seu irmão mais novo que sempre o ajudou.
Será que conseguimos imaginar um mundo sem a música de Bach, ou sem a pintura de Vang Gogh? Existem almas cujo génio, de tão avançado, precisa que passem 100 anos até que o mundo se digne reconhecer o seu valor! Se estas almas não tivessem persistido na sua labuta, independentemente do reconhecimento desejado mas não alcançado e, mais ainda, no caso de Van Gogh, independentemente do retorno financeiro que nunca aconteceu, toda a humanidade teria ficado a perder!
Afinal o que é que determina o sucesso ou o fracasso de uma vida?
O substantivo sucesso tem origem no latim successus, que significa entrada; abertura; vinda; bom resultado; êxito. Relaciona-se também por via do latim com suceder, no sentido de acontecer. Fracassa-se, portanto, quando aquilo que se esperava, ou desejava, não acontece. Vivemos num mundo orientado para os resultados, só se ouve falar de índices de produtividade. Estes tendem a ignorar os processos, que são assim esvaziados do seu significado intrínseco. Nesta lógica nociva os processos carecem de valor em si mesmos, passando a sua validade a depender do atingir ou não a meta que se propõem. Se os fins não são atingidos fracassa-se. A palavra fracasso deriva do Italiano frangere, que significa quebrar e quassare, que se pode traduzir por sacudir, chacoalhar, bater repetidamente, ameaçar, e quebrar. Fracassa-se, portanto, quando aquilo que sucede frustra as expectativas ao não se atingir o fim pretendido. A lógica nociva determina também que ao fracassar, todo o tempo despendido na actividade que se vinha desempenhando seja considerado vão. Quer dizer, é feita uma avaliação com efeitos retroactivos: não apenas o momento do fracasso é negativo mas também todo o tempo que se empregou até ali chegar. O momento da falha como que quebra um frasco que contém um veneno poderoso que contamina todo o tempo empenhado no objectivo que agora se viu gorado. Este procedimento mental, tão frequente, é uma receita efectiva para a infelicidade!
O que é que terá feito com que Van Gogh tenha continuado a pintar apesar de nunca ter vendido um quadro? O que é que terá feito com que Bach continuasse a compor apesar das suas composições não obterem êxito? Talvez a escolha de ambos não dependesse do resultado da actividade a que que se dedicaram mas tivessem eles encontrado um valor intrínseco no desenvolvimento da actividade em si mesma. Talvez o prazer inerente ao acto de pintar ou ao acto de compor os nutrisse e isso bastou! Ou talvez não tivessem podido deixar de o fazer, porque um dependia de pintar e outro de compor tanto como de respirar!
Se desviarmos a atenção da finalidade para a actividade podemos avaliar se aquilo em que despendemos o nosso tempo, aquilo em que nos empenhamos nos nutre ou não. Se nos emanciparmos do resultado, se lhe tirarmos a relevância, seremos melhores juízes do emprego no nosso tempo. Mas se, apesar de tudo, não conseguirmos deixar de ter expectativas e de orientar as nossas forças rumo a uma meta exterior, então, nesse caso limite, disponhamo-nos a fracassar com graça! Ou como diz Samuel Beckett: “Não importa. Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor.”
Estes são os meus votos para o ano que entra: desenvolvamos a arte de fracassar e obteremos leveza e alegria como efeito secundário!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de janeiro)