Há uns anos (em 2006), vi um filme que achei muito interessante. Chamava-se Stranger Than Fiction, no original, e foi traduzido como Contado Ninguém Acredita. Classificado como comédia dramática, vemos Will Ferrell no papel de um agente do IRS (serviço fundamental nos EUA. Não nos esqueçamos que o gangster Al Capone não foi preso pelos assassinatos que cometeu, mas por fraude fiscal), que ouve uma voz (Emma Thompson) que narra, literalmente, cada momento da sua vida. Preocupado (porque a voz lhe diz que ele vai morrer, mas não sabe ainda como), procura saber o que lhe está a acontecer, e, a um dado momento, vai ter com um professor de literatura (Dustin Hoffman) que lhe faz um teste, com várias perguntas, de modo a tentar perceber que tipo de personagem ele é e em que história ele está. A primeira pergunta é: «Alguém lhe deixou um presente à porta de sua casa, por exemplo, dinheiro, um enorme cavalo em madeira?». Depois, continua com outras do género: «É rei de alguma coisa?», «Sente que o seu corpo é feito de outros materiais?». Por fim, explica que, com aquelas perguntas, já o excluiu de metade da literatura grega, de vários contos de fadas, e assim por diante, e já sabe que ele não é Hamlet, nem Miss Marple, nem o monstro de Frankestein. Durante o filme, vão tentando perceber se a vida dele é uma comédia ou uma tragédia. Deixo a descoberta do final para quem quiser ver o filme.
O que me fez recordar este episódio foram os testes que correm na internet (principalmente no Facebook), em que as pessoas obtêm respostas a perguntas deste género: «Adivinhe que personagem da Literatura você é» ou «Adivinhe que deus(a) da mitologia você é», e assim por diante. E as perguntas a que se tem de responder são do mesmo tipo das que aparecem no filme, mas muito menos sofisticadas. Por exemplo: «a) Gosta de ficar em casa à espera do seu marido? b) Gosta de sair com as amigas para caçar? c) Gosta de seduzir e engana o seu marido?». Como resultado destas e de outras (costumam vir em grupos de 10), seremos a) Penélope, a esposa que esperou vinte anos pelo marido, Odisseu, no regresso da Guerra de Troia; b) Ártemis (Diana), a deusa da caça; c) Afrodite (Vénus), a deusado amor, que enganava o marido, o deus do fogo, Hefesto (Vulcano).
A tragédia de Antígona
A verdade é que muitas das personagens da literatura nos fazem pensar no que faríamos na mesma situação em que elas se encontram. Interessam- me, especialmente, as da literatura grega, nomeadamente as que aparecem nas tragédias. Quem me conhece sabe que a minha preferida é a Antígona. São várias as razões desta preferência, mas nomeio apenas algumas: o facto de ser mulher, de ser jovem, de opor-se a um poder instituído e tirânico. Pode parecer de pouca monta, mas considerando que estamos a falar de mitologia grega (a minha fonte é a versão de Sófocles, do séc. V a.C., na tradução de M.H. Rocha Pereira), é bastante. Antígona é confrontada com um decreto do rei, seu tio materno, que condena à morte quem sepultar o corpo do seu sobrinho Polinices, que morrera a lutar contra a cidade. Entre a decisão de deixar o corpo do irmão a apodrecer ou sepultá-lo, com risco da sua própria vida, Antígona opta por esta última atitude. A irmã, a quem ela revelara os seus intentos, é mais realista. Consciente de quem vem de uma família trágica (são filhas do rei Édipo e de Jocasta, que, para além de marido e mulher, eram, sem o saber, filho e mãe), Ismena declara: «E agora, que só restamos nós as duas, vê lá de que maneira ainda pior acabaremos, se, contra a lei, vamos transgredir o édito dos soberanos ou o seu poder. Pelo contrário, é preciso lembrarmo-nos de que nascemos para ser mulheres, e não para combater com os homens, e, em seguida, que somos governadas pelos mais poderosos, de modo que nos submetemos a isso, e a coisas mais dolorosas. Por isso rogo aos que estão debaixo da terra que tenham mercê, visto que sou constrangida, e obedeço aos que caminham na senda do poder. Actuar em vão é coisa que não faz sentido» (vv. 58-68).
Quem seríamos?
Antígona não insiste com a irmã (aliás, mais tarde, quando é denunciada e levada perante o rei, recusa a ajuda de Ismena, que se acusa de, igualmente, culpada – vv. 536-7) e leva a sua avante, porque acredita que faz o que está certo, de acordo com a sua crença de uma vida depois da morte: «Para mim, é belo morrer por executar esse acto (…) já que é mais longo o tempo em que devo agradar aos que estão no além do que aos que estão aqui. É lá que ficarei para sempre» (vv. 72; 74-6). As razões de Ismena não ecoam na sua lógica e na sua emoção: ser mulher não é razão para não se opor aos homens, nem tem de se submeter aos poderosos. É verdade que não vai feliz para a morte e lamenta a sua sorte – quem não lamentaria? – mas não recua. O namorado (seu primo, porque filho do rei) tenta argumentar com o pai, mas este não o ouve. É outro dos passos mais interessantes desta peça. Quando o filho diz que a cidade («o povo unido de Tebas») não acha justo o que está a fazer, dá-se este diálogo (vv.733-739):
CREONTE – E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?
HÉMON – Vês? Falas como se fosses uma criança.
CREONTE – É portanto a outro, e não a mim, que compete governar este país?
HÉMON – Não há Estado algum que seja pertença de um só homem.
CREONTE – Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?
HÉMON – Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta.
Há ainda outra personagem que contribui para o desfecho fatal: o Guarda que vê Antígona a cobrir o corpo do irmão com terra e a denuncia. Não porque não a compreenda ou não tenha pena, mas porque, contrariamente a Antígona, tem medo do poder e considera o bem-estar individual um bem superior a estes valores. Quando a leva ao rei (que o ameaçara que seria ele o castigado se não encontrasse quem andava a tapar o corpo), diz: «Acusámo-la das acções passadas e presentes; não negou coisa alguma, com prazer e pena minha, ao mesmo tempo. Porque isto de uma pessoa escapar de uma calamidade é o melhor que há; mas é penoso levar à ruína aqueles que se estimam. Porém, tudo vale menos para mim do que a minha própria salvação.» (vv. 434-440).
Que personagem seríamos nós? Antígona, que morre pelo que acredita? Hémon, solidário, que morre com ela? Ismena, que tem medo, mas que no final ganha coragem e solidariza-se? Ou o Guarda, que faz tudo para se salvar?
Ou Creonte, que provoca esta tragédia por não ouvir os outros? E, afinal, seria tão simples, como diz o Coro: «Para ser feliz, bom-senso é mais que tudo».
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Abril)