Notas sobre o projeto:
“Pelos que Andam sobre as Águas do Mar” é um espetáculo de teatro documental onde convocamos a obra OS PESCADORES, de Raul Brandão, adaptando à cena as suas palavras e inspirando-nos no itinerário que o autor realizou pela costa portuguesa no início do séc. XX para a escrita do seu livro. As sua memórias e deambulações são acompanhadas pelo forte cromatismo das paisagens que nos dão a ver a dimensão do nosso mar e de quem dele fazia vida.
Esta obra, escrita há mais de 90 anos, permanece como um dos mais belos roteiros literários dos nossos portos, praias e rias, e um testemunho fundamental da realidade litoral do nosso país. Partindo do livro de Raul Brandão e do trabalho de pesquisa junto de diferentes comunidades piscatórias, “Pelos que Andam sobre as Águas do Mar” assenta numa abordagem antropológica que nos possibilitou explorar linhas de pensamento e perspetivas diferentes sobre o livro e sobre aquilo que define as comunidades marítimas à luz da contemporaneidade. Partimos do pressuposto que a pesca é um fenómeno humano e por isso social, cultural e identitário, encerrando em si vivências e conhecimentos que apontam para especificidades locais e territoriais. Sendo a proximidade ao mar e àqueles que dele fazem vida um dos pilares deste projeto, tornou-se imperativo a realização de Residências Artísticas nas localidades onde o espetáculo é apresentado. Durante esses períodos de Residência é feita uma pesquisa sobre a comunidade, privilegiando o contacto direto com a população, recolhendo testemunhos e histórias de vida que posteriormente são integrados na dramaturgia do espetáculo, que se alimenta dessa profusão de estórias, factos, mitos do passado e do presente. Posteriormente estas experiências e recolhas serão também incluídas numa edição em livro sobre o processo artístico do projeto, algo que consideramos de extrema importância para memória futura, combatendo a indubitável efemeridade teatral.
No cruzamento e interligação de diferentes olhares e narrativas, construímos uma abordagem multidisciplinar que traça uma ponte entre a realidade da pesca, a etnografia, a literatura e o teatro. Porém, nesta procura de estar perto daqueles que fazem do mar o seu chão seguro, são da maior importância as instituições que connosco colaboram, pois o encontro com as comunidades implica um trabalho continuado, de investimento físico e emocional que, sem parceiros que a ele se dediquem regularmente, não seria possível. Interessa-nos fazer deste projeto um lugar de encontro efetivo e afetivo com as pessoas. Neste sentido, o contacto com os vários Museus que connosco colaboram foi essencial, pois são eles as instituições locais que mais incorporam uma missão de proximidade e investigação permanente com e sobre a população.
Portimão – notas prévias
Depois de Nazaré, Sesimbra, Tróia, Montijo e Setúbal, chegamos a Portimão. Raul Brandão não se demorou por aqui, mas imaginamos os seus olhos vivos no deslumbramento da luz, da cor e da “cenográfica Praia da Rocha”. O seu destino era Sagres. O nosso foi Alvor, que visitámos pela primeira vez em março, não sem antes conhecermos os três percursos que a antiga fábrica de conservas La Rose, hoje Museu de Portimão, nosso parceiro, nos oferece. A visita à vila piscatória acontece graças à colaboração do Museu, que nos possibilitou ter como guia a Dra. Patrícia Ramos, já conhecida na comunidade. Somos recebidos de braços abertos entre as centenas de fios de nylon que recebem o isco. Prepara-se o aparelho e fala-se da vida junto ao rio, do velho salva-vidas. Rapidamente alguém nos traz um copo de medronho… É de manhã ainda, mas está fresquinho e não há qualquer hipótese de renunciar a oferta.
Somos rapidamente convidadas para almoçar e, na impossibilidade de tal acontecer, prepara-se um saco com sarguetas para levarmos para casa. Para o almoço as favas serão apanhadas na pequena horta que o Sr. Zé Miguel fez à beira-mar. A solidariedade e a partilha são características que temos encontrado em todas as comunidades onde temos trabalhado e aqui não é exceção. E também estas mãos, cujos dedos engrossaram com o tempo e com o sal, nos testemunham a sabedoria de quem conhece os mares e os seus fundos, como as linhas que caminham nas suas palmas.
Notas para o futuro
No dia 31 de maio, às 21.30 horas, no Auditório do Museu, duas atrizes darão corpo e voz às histórias recolhidas, convocando de forma poética a memória e a paisagem da nossa costa e das suas gentes. A elas se juntará um coro de mulheres da comunidade de Alvor, entoando a tragédia e a esperança que o mar sempre nos convoca, numa homenagem a quem faz ou fez do mar a sua vida. Procuramos com este projeto um tipo de teatro que fale das pessoas, dos lugares e do nosso património conjunto, local e universal! O que contamos não é nosso. Não nos pertence. Pretendemos apenas que não sejam esquecidas as histórias que nos unem. O teatro servirá em última instância para isso. Sejam bem-vindos ao palco do Museu!
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Maio)