Vivemos um tempo de grande incerteza, em que a recente pandemia parece ter suspendido as nossas vidas, e onde as coordenadas que norteiam a nossa existência parecem integrar-se cada vez mais numa realidade a roçar a distopia. Este inimigo invisível fez suspender os contactos humanos, a uma escala local, europeia e mundial, como nunca imaginámos poder assistir. Sabemos ainda, que depois desta crise, teremos uma outra, provavelmente mais longa, com consequências económicas, sociais e humanitárias ainda pouco previsíveis.
No momento crítico que atravessamos, precisamos refletir sobre os modelos e estruturas que sustentam a nossa vida em sociedade, sobre os pilares em que a nossa civilização ocidental se ancora. Nesta perspetiva, o património pode deter um papel mais importante e decisivo do que à partida se poderia supor. Seentendermos o património não apenas como testemunho do passado, mas também como um imprescindível recurso e ainda como um processo dinâmico em constante revisão e construção, onde se refletem os nossos desejos e aspirações para o futuro, podemos imaginar o que queremos para este património global que temos em mãos. Para esta mudança de paradigma, muito têm contribuído os critical heritage studiesque encaram o património como recurso cultural, ideológico, social e político, que nos pode auxiliar a ultrapassar os problemas societais mais críticos e complexos.
E é nesta perspetiva que interessa refletir e promover um projeto europeu muito especial, aindapouco conhecido entre nós, mas que tem o potencial de constituir um importante agente de mudança: a Marca do Património Europeu (MPE).
Esta é uma iniciativa da União Europeia, que distingue bens patrimoniais, sítios, documentos, monumentos e paisagens culturais que simbolizam a integração, a história e a cultura europeias e os seus valores comuns. A ideia de dimensão europeia promovida pela MPE integra uma narrativa baseada nas noções de pluralidade cultural, associada a diversos processos históricos transnacionais, que reconhecem as ligações e redes de memórias, que se estendem também para lá da Europa.
E é aqui que este projeto pode deter, de facto, um papel relevante, “saindo fora das portas europeias”, não se encerrandoem narrativas fechadas sobre si mesmas, numa abordagem que tenta combater as práticas, as narrativas e as mentalidades eurocêntricas, colonizadoras, raciais ou elitistas, que excluem sempre um determinado “outro”.
O projeto MPE tem ainda o potencial de promover um debate em torno do que é, efetivamente, o património para os cidadãos, para além das esferas política, da academia ou de especialistas. Pode significar também uma oportunidade de constituir um projeto verdadeiramente polifónico, ao incluir diferentes visões sobre o passado e sobre o presente e de as integrar no debate em torno de questões prementes e cruciais.
Por outro lado, investigadores como Rodney Harrison, defendem uma noção de património, onde se diluem as diferenças entre património cultural e património natural, e por isso o entende como uma série de escolhas que emergem de um diálogo entre atores humanos e não humanos, que estão comprometidos com práticas de proteção patrimonial, conceito cada vez mais abrangente, no momento presente.
O Promontório de Sagresapresenta dimensões geofísicas, naturais, históricas e simbólicas que o tornam num território excecional, no âmbito da celebração dos valores, dos ideais, da cultura e da história europeia, que o levaram a ser distinguido com a Marca do Património Europeu, em 2015. Foi neste território que o Infante Dom Henrique idealizou o seu projeto expansionista que veio a proporcionar uma série de mudanças tecnológicas, científicas, culturais e epistemológicas, que foram decisivas na trajetória de construção da História Europeia e do Mundo.Como Almada Negreiros nos dizia, foi neste lugar que se iniciou a “universalidade da Europa”.
Este território de enorme beleza paisagística apresenta ainda uma forte carga telúrica, mitológica e semiótica, características únicas que nos fazem refletir sobre a importância do património natural desta finisterra e sobre a pertinência da revisão do conceito de património, que possa ir para além da dicotomia natural versuscultural, associada à dicotomia homem versusnatureza.
Poderá o Promontório de Sagres auxiliar-nos no debate urgente em torno do nosso património natural global?
Que relação pode existir entre o Promontório de Sagres, o Forte Cadine (Trento/Itália) ou a Casa de Robert Shuman (França)?
Para saber mais informação sobre estes ou os 38 sítios distinguidos com a Marca do Património Europeu basta clicar AQUI.
Raquel Roxo
(Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve)
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de abril)