Nestas curtíssimas férias de Carnaval desafiaram-me para esquiar. Mais vale tarde que nunca, pensei. Disponibilidade motora não me falta, arrojo também não, e a perspectiva de cair em neve fofa não me assusta… Já levantar-se de skis postos tem bastante que se lhe diga, mas isso não sabia eu quando aceitei o desafio. Tem algo de anti-natural este desporto: se baixamos o centro de gravidade, coisa que instintivamente se faz ao prever uma queda, a velocidade aumenta; trava-se, pelo menos no início, metendo os pés para dentro e abrindo os calcanhares; e, last but not least há que colocar o corpo direito e o peso à frente para se manter o controlo dos skis… É um constante dizer ao cérebro para reagir ao contrário! Quando por fim o descontrolo deu lugar a algum equilíbrio, comecei a sentir o prazer de deslizar. Bastava elevar os braços à frente e o corpo movia-se sem esforço, ligeiras inclinações proporcionavam curvas discretas. Com o olhar na brancura imensa da neve brilhante naquele sol que, dir-se-ia de verão, deixei-me escorregar com suavidade pela pista da montanha e então… Deslizei dentro de mim para a memória de um texto da filósofa Chantal Maillard, que encontrei em Málaga há 22 anos atrás, e que aqui traduzo:
“O mal de superfície e o prazer de deslizar
Andar na superfície tem a sua arte, e a arte tem algo de dom, e algo também de perseverança e dedicação. Nem a todos nos é dado saber andar na superfície; inclusivamente, dir-se-ía que oferece mais dificuldades e, sem dúvida, maiores perigos que a descida às profundezas. Maiores dificuldades porque a seriedade é uma atitude natural ou anterior no desenvolvimento do indivíduo social. O natural, o prévio é identificar-se com as situações que se padecem, suportam ou vivem. A profundidade supõe a identificação, supõe implicar-se no vivido. A profundidade oferece-se naturalmente à pessoa séria. Mais perigo porque, se bem que a profundidade não admite dispersão, a superfície oferece todas as possíveis. Não há nela caminho traçado nem objectivo que brilhe como um ponto final ou uma chamada, senão uma extensa rede com um horizonte circular. Seguir é o lema da profundidade; perder-se é o lema da superfície. A arte de andar em superfície é o deslizar. Traçar com o aflorar da própria existência as conexões que tornarão o gesto irrepetível, ao mesmo tempo que irá criando novos núcleos: espaços para o aparecer.
Deslizar requer uma certa delicadeza de corpo e de espírito e também o ter sabido escolher entre a justiça e a intimidade, como diz Jankélévitch a respeito do homem irónico. A intimidade, realmente, torna o corpo mais pesado, porque a intimidade é uma forma de posse, e toda a posse cria lastro obstaculizando o deslizar. A justiça, pelo contrário, permite o alargamento tanto dos sentimentos como do conhecimento. A justiça: o dividir da atenção, supõe a aproximação compreensiva às múltiplas formas de que o outro se reveste. Mas à justiça deve acompanhá-la um tempo adequado. É necessário que o movimento esteja em correspondência com o tempo interior. Isto é válido tanto para a superfície como para a profundidade, só que, na superfície o tempo dilata-se, enquanto que na profundidade se concentra.
Um dos males que aflige o indivíduo na nossa sociedade ocidental é o de querer que os seus actos se realizem a uma velocidade que não se adequa ao ritmo próprio. Um exemplo claro pode encontrar-se no campo do saber, concretamente, do saber filosófico. Como consequência do desenvolvimento dos sistemas de comunicação, o saber quantificou-se. Todo o investigador se sente obrigado a estar informado sobre o que se disse, nas mais diversas partes do mundo, acerca dos múltiplos temas sobre os quais se pensa na actualidade. A acumulação de informação disponível ultrapassa a capacidade de qualquer indivíduo normal. Quem é que não tem, numa ou em várias esquinas do seu quarto ou escritório, algumas pilhas de livros à espera de vez? Então, recorre-se a armazenar toda a informação possível na memória dos computadores. Isto tem uma consequência muito sintomática: sabe-se sem compreender. O saber sem compreender já não é exclusivo daqueles que só têm capacidade para armazenar dados. É também daqueles que, tendo capacidade de compreensão e criatividade, se vêem, no entanto, forçados a renunciar a pô-las à prova devido à falta de tempo de amadurecimento, de recolhimento, e de sossego que para tal se requer. Esta íntima falta de conexão com os universos referenciais do que se diz provoca o discurso estéril, típico da época actual, da palavra cockteil: agitação de significados cujos referentes imediatos são discursos alheios que, por sua vez, se estruturaram a partir de outros discursos, e assim sucessivamente; a experiência original do primeiro discurso referencial perde-se no tempo. Falar a partir da experiência pessoal tornou-se algo estranho, próprio apenas das pessoas ‘fora do comum’. Quem, no entanto, está ‘fora do comum’ se a condição humana é o nosso chão comum?
O mal de superfície aflige aqueles que não possuem a arte de deslizar. À força de permanecer na superfície sem saber como deslizar, alguns tomam consciência de que algo seu, pessoal e comum ao mesmo tempo, adoece. Pretendendo curar-se empreendem a busca dos antigos caminhos do profundo, mas dão-se conta, com horror, de que que já não servem. Alguns descobrem então que os seus movimentos são inadequados, que tão somente se trata de aprender uma nova forma de honradez: investigar as crenças em que estamos, tomar consciência do vazio, da página em branco, da possibilidade de ser: de se fazer. A agitação, então, cessou e ocorreu uma experiência fundamental. A partir daí, poderão começar a falar.”
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de março)