José Neutel nasceu em Cabinda, Angola, em 1974, e a sua adolescência foi passada em Viseu, onde estudou e se formou em enfermagem. Veio para o Algarve por uma questão de trabalho. Elogia a sua terra de coração, São Brás de Alportel, trabalha no Centro Hospitalar Universitário do Algarve desde 1996, está na pediatria desde 2001. O POSTAL foi conhecer um pouco mais sobre as paixões e projetos deste enfermeiro.
Como surgiu a paixão pela enfermagem e ligação à emergência?
Entrei nesta área por um “tropeção” do destino. Não foi a minha primeira escolha na Universidade, mas a partir do momento em que entrei apaixonei-me. A pediatria foi a minha primeira escolha dentro do curso base e, assim que me foi possibilitado, entrei dentro do departamento. A parte da emergência e da urgência foi a minha paixão e é uma paixão dos profissionais de saúde. Fiz viatura médica entre 2000 e 2010 e aprendi imenso, pois têm uma capacidade de trabalho incrível. Tenho uma forte ligação àquilo que é a emergência médica e a formação dentro dessa área. Tive a oportunidade de acompanhar a abertura das viaturas médicas de Faro e Albufeira, em 2000 e 2004, e colaboro naquilo que é a formação do INEM. Sou formador convidado do INEM e tive sempre um gosto particular pela formação dentro da emergência. Daí o “gostinho” de estar a trabalhar com o novo simulador, que é fundamental para uma boa formação.
Uma vez que falou no simulador, o que é que ele vai permitir?
O simulador vai permitir que consigamos ensinar o grupo de formação LEME, que está em grande formação, vocacionada para os adultos. Dentro da área da pediatria surgiu um grupo que se associou ao LEME para fazermos a formação em Suporte Avançado de Vida dentro do CHUA. Até ao momento tínhamos de estar a adaptar coisas e a trabalhar com equipamentos de adultos. Neste momento estamos autónomos e vamos colmatar esta lacuna que existia a Sul do Tejo, aqui na região do Algarve. Não é o primeiro material do género, existem dois, muitos antigos. Existe um dentro do departamento de formação do INEM e outro na ARS Algarve. São equipamentos antigos e extremamente usados. Este manequim permite ainda simular “quase tudo” de uma criança à volta dos seis anos. A única coisa que lhe falta fazer é levantar-se e andar. Ele fala, respira e tem pulso. Temos de treinar estas situações com simuladores e não crianças, isto tem de ser feito em salas de aula.
Esteve presente na entrega do simulador? Como reagiram os utentes?
Estive. Não decorreu nas melhores condições, devido a todo este problema de pandemia, mas foi muito emotiva. Os profissionais que o vão utilizar ficaram logo entusiasmados e quiseram experimentar e iniciar simulações. Estamos todos com vontade de iniciar a formação. Assim, para o ano estaremos em condições de fazer formações de uma forma regular e atingir objetivos, nomeadamente que todos os enfermeiros e médicos do departamento de pediatria tenham formação em suporte avançado de vida. É uma fasquia altíssima que vamos atingir a curto prazo.
“Têm sido meses complicados para trabalhar e temos conseguido dar conta do recado”
O José está envolvido em várias vertentes da saúde. Tem outros projetos profissionais?
Em 2010, a minha enfermeira diretora e o presidente da secção de saúde da Ordem dos Enfermeiro lançaram o desafio de tentar colmatar uma lacuna que a sociedade civil tinha (e tem, a meu ver), relativamente a um flagelo: as mortes por afogamento. Este tipo de morte é a segunda maior causa dentro da faixa da pediatria. É uma morte “evitável”, pois para além de todas as medidas de prevenção, temos de formar a sociedade civil sobre manobras de suporte básico de vida. Nesse sentido, o desafio foi lançado ao departamento de pediatria para dinamizar um grupo de formação que fizesse formação específica à sociedade civil. Eu e um grupo de sete ou oito colegas temos feito formação regular nos meses de verão em suporte básico de vida. É gratuita e não tem encargos, basta apenas inscrição. Este vai ser o primeiro ano em dez anos que estaremos parados. Apesar disso, em 2021 já existe previsão para o regresso, junto também de algumas escolas do Algarve.
Tenho estado ainda a desenvolver outra área do departamento de pediatria. Estou cada vez mais ligado ao controlo da dor e da ansiedade. Acho que é extremamente importante, pois uma criança quando recorre ao sistema de saúde está assustada e em pânico e o profissional de saúde tem de saber controlar esses sentimentos dentro dela. Tenho estado a investir bastante nesse controlo de ansiedade perante a perceção dos cuidados de saúde e eventos dolorosos (colheitas de sangue ou meras observações) e existem procedimentos de atuarmos de forma a reduzirmos a ansiedade.
Uma vez que falou na questão da pandemia, quando ela surgiu na China, achou que poderia chegar a Portugal?
Quando surgiram as primeiras notícias não me apercebi da dimensão daquilo que iria acontecer. Não tive a perceção. Estava a responder ao que os media nos estavam a informar. Fomos todos apanhados de surpresa com o que aconteceu. Quando chegou a Portugal, tive uma reação mista: de receio e apreensão e também de intensificação de esforços para nos organizarmos e estruturarmos para respondermos àquilo que estava a acontecer. Estamos a preparar-nos para aquilo que está a acontecer, o que prevemos hoje amanhã já não é da mesma maneira. Têm sido meses complicados para trabalhar e temos conseguido dar conta do recado. Temos falta de recursos humanos e materiais, mas temos conseguido superar.
Já teve contacto com uma criança infetada com covid-19? O que se diz a uma criança que esteja a passar pela doença?
Sim, já. Não se explica esta situação, diz-se apenas “olá campeão”. O que se diz a uma criança que tem uma pneumonia? Que tem uma infeção? Fala-se e brinca-se com ela. Não temos de falar disto como se fosse o fim do mundo, temos de atuar calmamente. A minha linha de abertura é essa.
Como acha que Portugal, particularmente a região algarvia, está a corresponder à situação, em termos de resposta do Serviço Nacional de Saúde?
Estamos a corresponder da melhor maneira possível. Se estamos preparados ou não, não sei. Não sei o que vem aí para dizermos isso. Com aquilo que está a acontecer, estamos a tentar dar a melhor resposta possível. Cada dia é um dia. Basicamente, a nossa expectativa são 24 horas, aquilo que brincamos quando mudamos de turno é: “o que é que mudou?”. É essa a adaptação que temos de ter. Comentei isto com a minha chefe de urgência: O ser humano é um animal de hábitos e o que nos tem consumido é não termos rotinas. Neste momento, o que nos está a acontecer é que não fazemos a mínima ideia do que vamos encontrar. Não há rotina, não há nada que aconteça duas vezes e isto consome muito. Não sei se vai ficar tudo bem, mas que nós vamos ultrapassar is- to, vamos. Faz parte da nossa raça ultrapassarmos dificuldades. Como vamos estar depois, falamos daqui a uns tempos.