“Eu tenho a vida partida em mil pedaços.
Cola-os tu com dois abraços”.
Sérgio Godinho.
Cada dia tem 24 horas, se descontarmos as 8 que devíamos dedicar ao sono mais as 8 que passamos a trabalhar, ficamos com um terço do que começámos. Mas desses 480 minutos quantos é que são, realmente, nossos? Vem-me à memória uma canção do Sérgio Godinho: “O tempo parece que foge/ dura o tempo de um café/ e o ‘antes fosse’ já não é/ e vou de carro e vou a pé (…) Vou ter que dar de comer/ à filharada e ao periquito/ às plantas da selva em que habito/ à tartaruga e ao mosquito (…) E tenho os dedos e a cabeça/ a telefonar pra toda parte/ e desço à Terra e subo a Marte”. Vivemos a correr atrás de não se sabe muito bem o quê, que nunca se consegue apanhar, numa sensação de escassez de tempo generalizada.
No entanto, quando nos encontramos com mais tempo do que prevíamos, frequentemente não sabemos o que fazer com ele. Ficamos ansiosos perante um fim de semana sem planos, sentimo-nos abandonados, vagabundos. Esse tempo livre que agora se abre à nossa frente magoa-nos mais do que quando foge. Torna-se urgente, necessário, imperativo, ocuparmo-nos. É preciso ocupar-se para não se aborrecer, para não entristecer, para não deprimir. Tendemos a considerar que de um lado estão a actividade, o movimento, o som — ingredientes constituintes das ocupações de um tempo bem vivido. Do outro lado estão o silêncio, a imobilidade, a solidão — características próximas da morte e, obviamente, reveladoras de um tempo mal passado. É como se o tempo precisasse de estar sempre preenchido e o seu esvaziamento equivalesse a tempo perdido.
Quem percebeu muito bem esta dinâmica e sabe tirar partido dela são as indústrias de entretenimento. Proliferam os festivais, os concursos, os eventos, as festas. Tudo com muita cor, música bem alta e uma linguagem motivacional reafirmatória do quanto é bom participar nestas actividades, identificar-se com os outros e exibir estar a sentir pelo menos tanta felicidade como o vizinho do lado. Longe vão os tempos das festas de garagem, em que o grupo de amigos se reunia e partilhava as músicas de que mais gostava, e se dançava e se namorava. Agora há uma indústria montada por trás do nosso suposto divertimento.
Nesta correria dispersa em tantas frentes, neste galopar incessante voltado para fora, que sentido têm estas mil e uma ocupações? Um dia acordamos e damos conta de que somos um rato que dá voltas e voltas na roda da sua gaiola sem nunca sair do lugar! A actividade, o movimento por si só, de nada vale. São os afectos que dão sentido à vida e que de um modo misterioso colam, fazem aderir estes fragmentos uns aos outros criando uma forma, um todo, que constitui aquilo a que chamamos a nossa vida.
O Amor Asfixiado
Vida na negação é a que se vive na ausência do amor.
María Zambrano, A Metáfora do Coração
Que lugar ocupam os afectos na vida de hoje? Com facilidade falamos do amor pelos filhos, ou do carinho pelos pais e avós, mas do amor entre pares, a esse camoniano fogo que arde sem se ver poucos ousamos referir-nos. Sentimos receio e até vergonha de nos apaixonarmos. O amor apaixonado é um coração que lateja em carne viva e, hoje em dia, já ninguém se dispõe a deixar-se ferir. Renunciamos ao enamoramento, fugimos da paixão, e com tanto medo que temos de que nos partam o coração fechamo-lo a sete chaves e escondemo-lo. Esse coração embalsamado é uma flor que murcha antes de ter florescido.
Amar é estar ligado, e estar ligado implica, forçosamente, um certo grau de dependência. Tal como dependem os órgãos uns dos outros num organismo vivo, tal como se afinam pelo mesmo diapasão os instrumentos de uma orquestra. Entrelaçar uma alma com outra só é possível na entrega. Com a glorificação da independência banimos o amor.
A filósofa María Zambrano no seu livro A Metáfora do Coração põe o dedo na ferida ao afirmar que uma das maiores indigências dos nossos dias é, precisamente, a que se refere ao amor. “Não porque ele não exista, mas porque a sua existência não acha lugar, acolhimento na própria mente e mesmo na própria alma de quem é visitado por ele. (…) Todas as liberdades não parecem ter-lhe servido de nada; à medida que o homem foi acreditando que o seu ser consistia em consciência e nada mais, o amor foi-se encontrando sem espaço vital onde respirar, como um pássaro asfixiado no vazio de uma liberdade negativa. (…) Pois a liberdade foi adquirindo um sinal negativo, foi-se convertendo — ela também — em negatividade, como se, ao ter feito de uma liberdade o a priori da vida, o amor, o primeiro, a tivesse abandonado. E assim ficará o homem com uma liberdade vazia, o oco do seu ser possível.” É como se nos sentíssemos diminuídos e humilhados se ousássemos pronunciar essa frase tão simples e verdadeira, espécie amorosa incontornável… Não é apenas eu gosto, é eu preciso de ti. No entanto, quando se venera a deusa da Independência, a necessidade do outro tem de ser erradicada. O mínimo sintoma de dependência afectiva, é tratado como um cancro. Assim se submetem possibilidades de amores felizes à quimioterapia da emancipação, e acabamos por deitar fora o bebé com a água do banho.
Não sei se “Deus morreu” como afirmava Nietszche, ou se foi o homem que se cansou d’Ele e do divino que leva em si. Não suportamos o brilho dessa “centelha de estrela”, tal como Heraclito definiu a alma humana. Nesta ânsia de nos libertarmos do divino resolvemos acreditar que toda a realidade se submete a um encadeamento de causas e entrámos num jogo interminável de fazer contas e de arranjar razões para tudo. “Mas o divino é o incalculável, o que pode destruir todo o cálculo e anular qualquer conta, ainda que esteja bem feita.” (M. Zambrano, A Metáfora do Coração) Nesta ânsia de independência subvertemos o amor. E o amor “convertido em facto, decaído em acontecimento e submetido a julgamento fica desvirtuado na sua essência que tudo transcende; despojado da sua força e da sua virtude. Ao amor de nada lhe serve aparecer sob a forma de uma paixão arrebatadora; é como se, cuidadosamente, alguém tivesse efectuado uma análise e extraísse o divino e avassalador que nele existe para o deixar transformado num acontecimento, no exercício de um direito.” (Ibid.) Assim subjugado, o amor está como que “enterrado vivo, vivente, mas sem força criadora” (Ibid.).
Queremos continuar a desviver-nos assim?
A Primavera está a chegar e com ela a disposição para enamoramento. Talvez valha a pena reaprender com Zambrano que “o espaço infinito de uma liberdade real, é a liberdade que o amor concede aos seus escravos” (Ibid.).
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Março)