Luísa Costa Gomes, nascida em Lisboa em 1954, licenciada em Filosofia, professora, directora da revista de contos FICÇÕES, gosta de dispersar a sua escrita pelas mais variadas áreas, do teatro ao conto, da crónica à tradução e legendagem, da mesma forma que gosta de alternar a escrita de um romance com outras tarefas. Sob a chancela da Dom Quixote, este é o mais recente romance da autora, quatro anos depois de Claúdio e Constantino (2014), e cerca de dois anos depois da reedição revista de A Vida de Ramon (1991, reeditado em 2016), curiosamente um texto de carácter hagiográfico, um romance biográfico sobre Ramon Llull, místico e missionário nascido em Maiorca, que viveu entre 1232 e 1316 e percorreu o mundo, do Mediterrâneo a África e à Ásia.
Florinhas de Soror Nada conta a vida de Teresa Maria, nascida no seio de uma família burguesa na segunda metade do século XX e perante um pai distante e uma mãe incrédula, vai afirmando a sua vontade em ser santa: «São Francisco jejuou quarenta dias, e ela não pode saltar o jantar?» (p. 33)
Ler esta narrativa é como ouvir uma reza, tal o ímpeto da linguagem que corre escorreita, límpida, musical, coloquial, por vezes com arcaísmos. Há ainda uma profusão de vocabulário religioso, como convém a uma hagiografia ou narrativa de vida de santo, mas quase sempre aplicado com humor. Igualmente marcante é a ironia da autora, por vezes com um sentido crítico mais cáustico, enquanto procura retratar a natureza contraditória desta criança que se quer santa (note-se o subtítulo A Vida de Uma Não-Santa), ao mesmo tempo que critica os religiosos, nomeadamente os padres, e os mitos e tabus.
«[Teresa Maria] Reconhece-se na indiferença com que as paroquianas recebem a indigna invectiva, um encolher de ombros perante as tais e quais birras do padre; elas bem sabem que não pecaram, não têm o hábito de pecar, não porque não queiram, ou não possam, mas na aldeia a oportunidade raramente se apresenta. Vivem ambas num dia-a-dia de caldos e cuidados, de quando em vez há um pensamento menos caridoso, um afundar-se no desespero, mas de passagem, ao fim da tarde, antes da solidão da noite, que dormem dum sono só.» (p. 125)
A ironia e o humor pautam a escrita da autora, se bem que neste livro haja uma intenção mais vincada que por vezes aproxima o livro da sátira. É emblemático o episódio em que Teresa arranca a orelha da estátua, como quem leva uma relíquia…
Teresa Maria mostra um excesso de autoconfiança que é, aliás, o que lhe permite desafiar mesmo a família, que pouca importância lhe dá, quando toma a peito a sua vocação ou o ofício de ser santa. Tal como outros exemplos bem documentados da história das hagiografias, não se pense que a santidade de Teresa Maria nasce sem mácula. Pelo contrário, é depois do pecado, isto é, das brincadeiras sexuais que tem com Rafael, filho da criada de casa, que Teresa Maria mais acirradamente procura redimir-se.
A autora brinca com a linguagem da mesma forma que desmonta dogmas, enquanto narra a história de uma jovem que tão depressa tem brincadeiras exploratórias sexuais com Rafael (com nome de anjo) como depois corta o cabelo à tesourada ou põe cinzas na comida. A infância desta jovem é desfiada num rosário lento e espaçado, para depois no fim a narrativa ganhar novo fôlego e ímpeto, enquanto passa em revista a idade adulta e a terceira idade da protagonista, como se a consciência da vivência do tempo fosse mais lata quanto mais pequenos somos e menos vida acarretamos.
A autora parece ainda explanar o modo como na infância a vocação ou o sentido de missão é muito mais forte, mas conforme se dá a sua imersão na vida mundana e quotidiana, a «Idade Média», Teresa Maria é cada vez menos uma Teresa de Ávila e cada vez mais uma Maria, uma mulher sofredora, pois mesmo escapando ilesa aos martírios de santos, sobre os quais discorria com um certo contentamento sádico em criança, torna-se evidente como a vida humana é bastante difícil por si só, sem o estigma da diferença:
«Sofrer ou morrer, cumprindo o lema de Teresa em Ávila? Teresa que se aguentasse em Ávila, era forte e façanhuda, tinha a sua própria ambição de vir a figurar no calendário. Mas ela não. Não, assim não.» (p. 134)
Perto do final do romance, no último capítulo justamente intitulado «Vida», lê-se em cerca de quarenta páginas a súmula de toda a vida da protagonista, ficando o leitor a saber que se casou, teve filhos, e netos, e adoeceu, sem grande encantamento ou marcos assinaláveis que distingam a vida dessa mulher de outra qualquer. É também nesse momento que é mais fácil para o leitor simpatizar ou criar empatia com as vivências da protagonista. Mas também assistimos ao modo como em Teresa Maria, no decurso da sua vida, há um decréscimo da fé, em particular após o «Sermão à Ranhosa», ao ponto de renegar completamente a sua paixão de outrora por Deus, enquanto paradoxalmente aumenta o seu apetite pelo vinho.
A narrativa estende-se numa via sacra de 13 capítulos, se bem que chegando ao fim, é como se estivéssemos já mergulhados na leitura de um outro livro, tão forte é o cisma que se sente numa segunda parte da narrativa, com a mudança de paradigma por parte de Maria Teresa, quando aos 97 anos se prepara para morrer. Chegados ao final do livro, retoma-se o que lemos no início, num género de prólogo, onde se pressentia a desconexão de uma mente perdida, próxima da demência ou do esquecimento: «A morte já passou, falta morrer.» (p. 12)
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Maio)