De acordo com a origem etimológica, a palavra carnaval vem do latim carnem levarem que significa abster-se da carne. O nome da festividade antecipa o período de privações inerentes à Quaresma onde não apenas a carne mas também o álcool e outras substâncias dadas à euforia são desaconselhadas. O jejum requer o afastamento dos prazeres mundanos.
Preparamo-nos, pois, para a privação, com o excesso. O Carnaval é uma festa da exorbitância e do descomedimento. Não apenas se ingere carne, mas mostra-se a carne: os corpos cantam e dançam até à exaustão. No Brasil as escolas de samba exibem o seu virtuosismo em todo o esplendor. É o prazer do corpo, dos sentidos, da sexualidade que se exulta.
Durante o Carnaval recorre-se à sátira, criticam-se as autoridades, vive-se uma inversão de papéis sociais, e como “é carnaval, ninguém leva a mal”. Já a actividade sexual pode tornar-se bastante concupiscente. Esta libertinagem tem até uma origem histórica:
Durante os cinco dias que duravam as Sacéias, comemoradas na Babilónia, um prisioneiro escolhido à sorte assumiria a vida do monarca: vestia-se e alimentava-se como o rei e tinha até direito a partilhar o leito com as suas esposas. Mas este paraíso depressa acabava pois findo o prazo o prisioneiro era chicoteado e depois enforcado ou empalado.
Na Mesopotâmia, perto do equinócio da Primavera, o rei era despojado das suas insígnias de poder e espancado junto à estátua de Marduk, para demonstrar a sua submissão à divindade. Depois do ritual o monarca voltava a assumir o trono.
Em Roma celebravam-se a Saturnália próxima do solstício de inverno em Dezembro, e a Lupercália em Fevereiro, mês das divindades infernais. Tais festas duravam dias, com comidas, bebidas e danças. Os papéis sociais também eram invertidos temporariamente, entre os escravos e os seus senhores.
Por seu lado, os ritos dionisíacos gregos, ou as bacanais romanas eram festas marcadas pela embriaguez e pelos prazeres da carne.
O lado mais negro do Carnaval é sem dúvida o do abuso sexual
Temos, portanto, muito por onde herdar nas práticas carnavalescas actuais. Dada a lascívia inerente a esta festividade as autoridades brasileiras lançaram em 2019 a campanha “Pare, pense e use camisinha” tendo distribuído 129 milhões de preservativos. Contudo a adesão dos foliões a esta medida foi bastante fraca, alegaram que o preservativo atrapalha a relação e impede a espontaneidade, admitindo que se expõem a situações de risco. Em 2020, o governo de Bolsonaro prepara-se para lançar a campanha “iniciação sexual não precoce” precisamente antes do Carnaval, para prevenir as doenças sexualmente transmissíveis, promover a abstinência sexual e evitar a gravidez na adolescência. Trata-se de uma verdadeira incitação à castidade cuja eficácia resulta duvidosa mesmo para os mais benevolentes.
Porém, o lado mais negro do Carnaval é sem dúvida o do abuso sexual. Para lhe fazer face foi também lançada uma campanha de prevenção sob o lema “Meu corpo não é sua fantasia”. Pretendem prevenir e promover orientação e segurança das pessoas que sofrerem violência durante o período de folia em todo o país. Em termos legais, a “importunação” sexual foi definida como a prática de um acto libidinoso contra alguém sem a sua anuência “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de um terceiro”. Com esta lei um “beijo à força ou qualquer outro acto consumado mediante violência ou grave ameaça, impedindo a vítima de se defender, configura crime de estupro.”
Que pensar de tudo isto?
As festas são uma celebração de algo positivo, são geradoras de alegria
As festas são uma celebração de algo positivo, são geradoras de alegria, de confraternização, de sentimentos de união e paz. O amor encontra uma das suas mais prazenteiras expressões nas relações sexuais. Os orgasmos produzem muitos benefícios como qualquer clique na internet pode ajudar a esclarecer, entre eles, o alívio das tensões e a união do casal propiciadora de estabilidade. Porque e como damos cabo de tudo isto?
Os excessos provocadores de dano ao próprio ou a terceiros justificam uma intervenção de controle. As privações sustêm-se de forma mais eficaz quando precedidas de abundância ou mesmo enfartamento daquilo de que nos teremos de abster. O sentimento de culpa provoca uma enorme vulnerabilidade. Tudo isto sabem os poderosos!
Vejamos o que tem Nietzche que dizer a este respeito no seu livro intitulado O Anti-Cristo: “A desobediência a Deus, isto é, ao sacerdote, à lei, chama-se agora pecado; os meios de reconciliar-se com Deus são, como é justo, meios que asseguram ainda mais profundamente a submissão ao sacerdote; só o sacerdote salva (…) em toda a sociedade organizada sacerdotalmente, os pecados tornam-se indispensáveis: são propriamente os instrumentos do poder, o sacerdote vive pelos pecados, tem necessidade de que se peque…”
Não querendo ficar sem a sua quaresma, a igreja consentiu e integrou o carnaval. Afinal o que são 3 dias comparados com 40?! Ainda por cima 3 dias propiciadores de muitos pecados. A seguir ao gozo vem o arrependimento. É preciso incutir durante o maior período de tempo possível o desalento, o desamparo, e a aspiração por algo superior. Sobretudo, é preciso que as pessoas andem melancólicas! Gente feliz consome menos, portanto, precisa de trabalhar menos e é pouco influenciável. Os tristes e os que se sentem culpabilizados manipulam-se muito mais facilmente!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de fevereiro)