De acordo com a especialista Teresa Rita Lopes, de entre as personalidades em que se desmultiplica Fernando Pessoa poder-se-ia colocar num extremo Álvaro de Campos, um Pessoa “em combustão viva” e, nos antípodas, Bernardo Soares, um Pessoa em “combustão lenta”.
Se Álvaro de Campos é um Pessoa em “mais interessante”, num “desenrolar-se para fora”, Bernardo Soares será um Pessoa “mais apagado” um “enrolado para dentro”.
Que poderia, então, esta criação tão menor, Bernardo Soares, ter para dizer à criação expandida, Álvaro de Campos, quando o visitasse? De que falariam? Permitam-me imaginar…
«Foi numa rara tarde cinzenta que Bernardo Soares visitou Álvaro de Campos em Tavira. Sentaram-se numa cafetaria da Praça da República, abrigados da chuva pelos grandes guarda-sóis da esplanada e pediram um chá para dois.
– Que o traz por cá?, inquiriu o famoso heterónimo.
Bernardo Soares encolheu-se na cadeira, parecia querer desaparecer entre as gotas de chuva. Como dizer ao autor das grandiosas odes que pretendia chamar a sua atenção para as coisas “mínimas extraordinárias”…
– Vim para consigo “saborear duma chávena de chá, a volúpia extrema que o homem normal sópode encontrar nas grandes alegrias”.
Álvaro de Campos levantou o sobrolho. Aquele homem minúsculo trouxe-lhe à memória Proust, e os sete volumes de Em busca do Tempo Perdido que nascem, precisamente, da análise das sensações que provoca o mergulhar de uma madalenano chá. Pela primeira vez olhou com atenção para o vulto apagado de Bernardo Soares, e com um gesto instigou-o a continuar. Então, o semi-heterónimo, agradecido pela oportunidade, começou a expor o seu método de Educação Sentimental:
– O primeiro passo consiste em sentir as coisas mínimas extraordinárias, “desmedidamente”. Claro que a desmedida pode ter consequências gravosas pois “sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade”. Se “o criar uma uma agudeza e uma complexidade imediata às sensações mais simples” pode conduzir a “aumentar imoderadamente o gozo que sentir dá”, pode também “elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir”.
– Pretende-se evitar o sofrimento?
– Nesta aprendizagem consistiria o segundo passo do sonhador na sua “ascensão para si próprio”. Não deverá distanciar-se do sofrimento, de maneira estóica, porque nesse caso “endureceria” tanto para o prazer como para a dor. O que há a fazer é: “ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter, ao sentir a dor, um prazer qualquer”.
Álvaro de Campos pigarreou e Bernardo Soares apressou-se a explicar que existem vários caminhos para esta atitude:
– O primeiro consiste em aplicar-se “exageradamente” a analisar a dor. Quando se tratar de prazer, não analisar mas sentir apenas.
A instrução sobre o prazer, acolheu-a Álvaro de Campos sem dificuldade, quanto à dor, contudo, solicitou-lhe que elaborasse. Retraindo-se na cadeira, como que pedindo desculpa, Bernardo Soares esclareceu:
– “A análise acrescenta à dor o prazer de a analisar. Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise.”
Alvaro de Campos assentiu, mas o seu semblante permanecia inquieto, dubitativo, pelo que Bernardo Soares se apressou a dizer que existia outro método mais subtil, contudo mais difícil. O grandioso heterónimo rogou-lhe que continuasse.
– O outro método consiste em “criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem.”
Não será fácil, concluiu Álvaro de Campos, ao que Bernardo Soares anuiu, salvaguardando, contudo, tratar-se de um método “eminentemente realizável”, sobretudo para os “industriados na mentira interior.”
Álvaro de Campos deixou escapar um sorriso! Descruzando e voltando a cruzar as pernas perguntou se haveria mais algum método.
Quase confiante Bernardo Soares confirmou que sim:
– Existe ainda um terceiro método “para subtilizar em prazeres as dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito.”
Álvaro de Campos rejubilou na expectativa da resposta, que não se fez esperar.
– O terceiro método consiste em “dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso”.
E para que não restassem dúvidas sobre o poder transformador da intensidade da atenção, Bernardo Soares frisou:
– Existe “o prazer que dói porque é muito prazer, e o gozo que sabe a sangue porque feriu.”
Álvaro de Campos estava pasmado perante a inteligência e sensibilidade daquela insignificância de homem que ali tinha mal sentado, encolhido, numa cadeira à sua frente. Acalorado exclamou:
– Eis um requintador!
Então, com um brilho no olhar, o pequeno homem ergueu-se e falou. O seu olhar parecia acariciar cada gota de chuva, e dos lábios suaves a voz surgiu:
– “Quando, como em mim — requintador que sou de requintes falsos, arquitecto que me construo de sensações subtilizadas através da inteligência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor — todos os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.”
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(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)
(CM)